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Imunidade treinada: entenda o conceito que permite à BCG proteger contra diversas doenças

Vacina contra tuberculose induz modificações em células do sistema imune, tornando-as mais aptas a combater diferentes patógenos


Publicado em: 10/10/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Comunicação Butantan e Shutterstock

 

Aplicada em recém-nascidos nas primeiras horas de vida, a centenária vacina BCG (Bacilo de Calmette-Guérin) é altamente eficaz na proteção contra as formas graves da tuberculose, doença transmitida pela bactéria Mycobacterium tuberculosis. Mas os seus benefícios vão além: o imunizante tem uma característica especial que deixa as crianças mais protegidas contra outros agentes causadores de doenças, induzindo a chamada imunidade treinada.

A primeira evidência desse fenômeno foi descrita em 1927, na Suécia, quando o médico Carl Näslund observou que recém-nascidos vacinados com BCG tinham uma taxa de mortalidade menor no primeiro ano de vida do que os bebês não vacinados. A mortalidade nos imunizados era um terço da observada naqueles que não tomaram a vacina. Na época, o pesquisador concluiu que a BCG provocava uma “imunidade não específica”. 

Essa atividade acontece porque o bacilo que compõe a vacina é capaz de induzir modificações dentro das células do sistema imune – principalmente nos monócitos, responsáveis pela primeira linha de defesa. É como se o BCG “treinasse” as células para responder melhor, ajudando-as a desenvolver um tipo de “memória” para combater patógenos.
 

pessoa apontando para marca de vacina BCG no braço

 

Naturalmente, por estarem à frente da defesa do organismo, os monócitos possuem diversos receptores que identificam uma variedade de antígenos. Quando se liga ao monócito, o BCG provoca alterações metabólicas (como aumento do consumo de glicose) e epigenéticas (que mudam a expressão de genes sem alterar a sequência do DNA). Com isso, a célula aumenta a quantidade de receptores e a produção de moléculas pró-inflamatórias, que ajudam na resposta imune, tornando-se capaz de reconhecer mais patógenos e de combatê-los de forma mais eficaz.

“Os monócitos são células de resposta imune inata, aquela que acontece imediatamente após o contato com um patógeno, como um vírus ou bactéria. O BCG deixa uma marca epigenética no DNA dessas células. Com isso, o monócito fica mais ‘preparado’ e responde rapidamente ao ser exposto a qualquer outro tipo de microrganismo”, explica a pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan, Dunia Rodriguez Soto.

Uma das linhas de pesquisa do laboratório é o desenvolvimento de vacinas BCG recombinantes, que carregam outros antígenos para potencializar a resposta imune. Como a eficácia da BCG cai na vida adulta, o objetivo é obter um imunizante que melhore a proteção contra tuberculose nessa faixa etária. 

Um estudo comparativo publicado na revista Vaccines mostrou que a versão recombinante do Butantan pode induzir uma imunidade treinada mais eficaz do que a vacina tradicional. Modelos animais receberam a BCG ou a BCG recombinante e foram posteriormente desafiados com o fungo Candida albicans. A sobrevida foi semelhante em ambos os grupos, mas aquele vacinado com a recombinante apresentou menor carga do patógeno, sugerindo um melhor controle da infecção.

 

Bebê sendo vacinado

 

BCG diminui mortalidade em crianças e pode reduzir infecções em idosos


A vacina BCG faz parte dos programas nacionais de imunização infantil de mais de 150 países, incluindo o Brasil, e teve uma cobertura global de 87% em 2023, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nos últimos 15 anos, uma série de estudos conduzidos na África mostrou uma redução de mais de 40% na mortalidade infantil após a vacinação com BCG, indicando que a imunização ajudou a prevenir malária, sepse, infecções respiratórias e hanseníase em crianças. 

Dados semelhantes foram observados em outros países da Europa e Ásia, segundo revisão publicada na Frontiers in Immunology pela Pontifícia Universidade Católica do Chile. Na Espanha, por exemplo, a BCG reduziu as hospitalizações por infecções respiratórias não relacionadas à tuberculose em crianças menores de 14 anos.

Vacina BCG: imunizante deve ser aplicado nas primeiras horas de vida e é melhor estratégia para proteger crianças das formas graves da tuberculose

Os efeitos protetores não específicos da BCG também já foram observados na população idosa. Um ensaio clínico conduzido na Grécia em indivíduos com mais de 65 anos mostrou que a aplicação da vacina diminuiu a incidência de infecções respiratórias, incluindo aquelas de origem viral e não relacionadas à tuberculose.


Cientista do Butantan trabalhando em laboratório


Vacina também é usada no tratamento de câncer de bexiga


Outro diferencial da BCG é que, desde o final do século XX, o imunizante é indicado para tratar câncer superficial de bexiga e reduzir o risco de recidiva da doença, devido à sua capacidade de estimular o sistema imune por meio da imunidade treinada. 

O efeito antitumoral da vacina é discutido desde a década de 1930, quando o pesquisador norte-americano Raymond Pearl identificou uma menor incidência de câncer de bexiga em pacientes com tuberculose. Em 1976, um estudo clínico avaliou a aplicação da BCG diretamente na bexiga de nove pacientes com esse tipo de câncer e mostrou uma redução na recorrência do tumor superficial.

No Butantan, cientistas do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas, liderados pela pesquisadora Luciana Leite, também desenvolveram uma versão recombinante dessa terapia, a Onco rBCG. Em testes em modelos animais, a tecnologia demonstrou melhor eficácia do que a BCG tradicional, causando maior redução do tumor. Atualmente, os cientistas analisam a estabilidade do vetor e da formulação e trabalham no escalonamento da produção e no controle de qualidade. Ainda não há previsão de estudo clínico para o novo tratamento.