Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: José Felipe Batista e Marília Ruberti/Comunicação
Quem é fã da badalada série americana O Urso (The Bear), que mostra o dia a dia da caótica cozinha liderada pelos chefes Carmen Berzatto e Sydney Adamu, sabe bem o quanto o lema “cada segundo conta” rege a rotina do estabelecimento. Apesar de não ter relação com panelas, facas e fogo – mas, acredite, envolve muitos ovos –, o Butantan também tem sua versão da máxima no processo de importação das cepas que compõem a vacina da gripe.
“Quando a Organização Mundial da Saúde [OMS] anuncia a necessidade de atualização do imunizante, precisamos trazer os novos vírus do exterior de maneira prioritária, uma vez que seu rápido recebimento é essencial para garantir que o produto seja fabricado a tempo e aplicado na população-alvo antes da chegada do inverno, período crítico da doença”, explica a gerente da Produção de Bancos de Influenza (PBI) do Butantan, Priscila Comone.
O coordenador do PBI, Hugo Jemesom, apresenta frasco com uma das cepas do vírus influenza (Foto: Marília Ruberti)
As cepas são como o coração de uma vacina. Primordiais na produção, elas induzem a resposta imune do organismo, uma vez que carregam o material genético do vírus. Em termos gastronômicos, são aqueles ingredientes-chave que definem o sucesso da receita.
Apesar da mudança na composição da vacina aplicada na população do hemisfério Sul acontecer apenas uma vez ao ano, o processo desencadeado internamente no Butantan é tão intenso quanto o corre-corre de um jantar movimentado. “Quando a data do anúncio vai se aproximando, todo mundo envolvido no procedimento já fica em alerta para oferecer uma rápida tomada de ação”, conta o coordenador do PBI Hugo Jemesom.
No total, nove áreas e cerca de 15 profissionais trabalham de forma coordenada para trazer essas cepas, que podem vir dos Estados Unidos, da Inglaterra, China, Japão ou da Austrália. O esforço resulta na produção de mais de 80 milhões de doses da vacina, distribuídas anualmente e de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde.
Todos os anos, a vacina da gripe é aplicada gratuitamente na população alvo da campanha (Foto: Marília Ruberti)
A necessidade de alterar a vacina a cada ano se deve às características do próprio influenza, que sofre mutações que alteram suas características com frequência. Por isso, a OMS avalia constantemente os vírus em circulação e indica quais versões dele devem compor a vacina – são as chamadas “cepas vacinais”.
No Brasil, o imunizante produzido pelo Butantan é trivalente. Ou seja, possui duas cepas do subtipo A (H1N1 e H3N2), que também podem ser encontradas em outros animais; e uma do tipo B, capaz de infectar apenas os humanos.
“Por mais que a nossa vacina reúna três cepas diferentes, o histórico tem mostrado que apenas uma se altera entre um ano e outro”, diz Priscila Comone.
Como é feita a vacina da gripe? PARTE 1: da chegada da cepa à multiplicação do vírus
Ovos livre de patógenos específicos são importados diretamente dos Estados Unidos para a ampliação da cepa vacinal (Foto: Marília Ruberti)
Tradicionalmente, o anúncio de atualização da vacina para os produtores do hemisfério Sul acontece na última sexta-feira de setembro, mas o trabalho das equipes envolvidas nos processos de importação e fabricação do Butantan começa semanas antes.
Um dos esforços prévios garante a logística dos ovos – sim, é isso mesmo, ovos. Eles até se parecem com o ingrediente utilizado na gastronomia; porém, os ovos usados pelo Butantan são “controlados”. Isso significa que eles vêm de galinhas criadas em ambientes monitorados, onde vivem sem nenhum tipo de contato com microrganismos.
Uma vez que servem como reservatório para a multiplicação das cepas, os ovos representam uma importante matéria-prima da vacina Influenza. Para se ter uma ideia, são necessários mais de 500 mil ovos por dia, ao longo de cinco meses, para a produção dos monovalentes que compõem o imunizante.
Cerca de duas semanas antes do anúncio oficial da OMS, a equipe de produção já programa a entrega de duas importantes levas de ovos. A primeira consiste em 500 mil ovos oriundos de granjas brasileiras certificadas e validadas pela área de Garantia da Qualidade do Instituto, e que devem chegar à fábrica do Butantan poucos dias após a divulgação da atualização para garantir o início da fabricação da vacina.
Já o outro lote envolve 1.700 ovos ainda mais controlados e são solicitados ao fornecedor com 45 dias de antecedência, pois são importados diretamente dos Estados Unidos. Classificados como Specific Pathogen Free (ou livre de patógenos específicos, em português), são ovos de aves mantidas sob condições de altíssimo nível de controle sanitário para que cresçam isentas de microrganismos indesejáveis, previamente estabelecidos pelos órgãos reguladores.
Priscila Comone e Hugo Jemesom são responsáveis pelo pontapé inicial do processo de importação da nova cepa da vacina influenza (Foto: José Felipe Batista)
O objetivo desses ovos “supercontrolados” é amplificar os 2 ml da cepa que será trazida do exterior, gerando o chamado “banco semente”: um lote reserva estratégico, capaz de evitar a necessidade de futuras importações. A fim de impedir surpresas desagradáveis, o volume é dividido em cinco entregas, e acredite: apesar de viajarem acondicionados em bandejas de papelão comum, como aquelas encontradas no mercado, eles não se quebram.
Na eventualidade de ocorrer a troca de apenas uma cepa – como de praxe –, a fábrica inicia a produção dos dois monovalentes remanescentes enquanto os trâmites para a importação da nova cepa avançam. Eles são elaborados a partir de cepas já produzidas previamente disponíveis no estoque do Butantan.
Essa estratégia garante que, quando a cepa recém-importada for liberada, a equipe de produção tenha tempo suficiente para desenvolver o terceiro monovalente e, assim, completar a formulação da vacina trivalente contra gripe dentro do prazo adequado.
Vale lembrar que o anúncio da OMS ocorre no final de setembro, e os primeiros lotes da vacina devem estar prontos em março e abril do ano seguinte. Isso porque todas as 80 milhões de doses que o Butantan encaminha ao governo federal precisam ser disponibilizadas em todos os cantos do país antes do inverno começar, em junho.
Agora que você já sabe tudo o que precisa estar “engatilhado” antes da produção, é hora de entender a corrida contra o tempo que acontece durante e depois do anúncio da OMS. Mas essas são cenas do próximo capítulo – ou melhor, da próxima matéria. Fique de olho.