Todos os anos, a vacina da gripe passa por um processo de atualização. O objetivo é garantir a melhor combinação possível entre as cepas que compõem o imunizante e os vírus circulantes, já que o influenza possui a alta capacidade de mutação como uma de suas características principais.
Para garantir que as mais de 80 milhões de doses da vacina cheguem sem atraso aos braços dos brasileiros a partir de abril, período quando começa a Campanha Nacional de Vacinação Contra Influenza, o Instituto Butantan inicia sua cadeia de produção meses antes, geralmente em setembro. “Do momento quando recebemos os ovos, matéria-prima para a produção da vacina, até a saída de um monovalente, são 21 etapas produtivas”, explica o diretor técnico de produção da vacina Influenza, Douglas Macedo.
O imunizante produzido pelo Butantan é trivalente. Ou seja, reúne as três principais cepas de influenza predominantes no momento: sendo dois vírus do subtipo A (H1N1 e H3N2) e um vírus do tipo B. Cada parte da vacina correspondente a um dos vírus é chamada de monovalente: portanto, uma vacina trivalente, como a do Butantan, possui três monovalentes em sua composição, já que protege contra três vírus. Cada lote de monovalente precisa ser fabricado separadamente e de uma única vez, e, entre um e outro, a fábrica para e passa por um processo de descontaminação. Apenas com todos os monovalentes prontos é que se faz a mistura dos três e o envase final do imunizante.
A cadeia de produção da vacina, no entanto, não se resume a essas etapas. Antes, existe um outro processo complexo, relacionado ao monitoramento dos vírus circulantes, juntamente com os demais produtores de influenza do mundo. Percorra essa jornada a seguir:
Etapa 1: a vigilância
Tudo começa com o processo de vigilância, que reúne mais de 150 laboratórios espalhados em todo o mundo, responsáveis por monitorar os vírus influenza circulantes e potencialmente pandêmicos. A ação é encabeçada pela Rede Global de Vigilância de Influenza da Organização Mundial da Saúde (OMS), criada em 1952, e culmina no anúncio anual dos tipos de influenza que deverão compor o imunizante que será aplicado nas campanhas vacinais do hemisfério Sul.
No final de setembro de 2022, a OMS recomendou que todos os produtores de vacina trivalente em ovos – caso do Butantan – atualizassem a cepa H1N1, que mudou entre um ano e outro.
Etapa 2: produção das cepas
Paralelamente ao período de vigilância, entram em cena os Laboratórios Referência, espécie de “colecionadores” de cepas do influenza. “São eles que produzem as cepas vacinais, um rearranjo genético entre o vírus influenza circulante e o PR8”, explica a diretora do Laboratório de Virologia do Butantan, Viviane Botosso.
Conhecido da comunidade científica, o PR8 também é um vírus influenza do tipo A já atenuado e com alta capacidade de replicação. Isolado pela primeira vez no ano de 1934, em Porto Rico – daí as letras “P” e “R” em seu nome, enquanto o 8 indica o número da amostra laboratorial analisada –, ele é utilizado desde a década de 1960 para a criação de cepas não patogênicas para os humanos, além de garantir a quantidade de doses de vacinas necessárias para o atendimento da população.
“O PR8 ajuda a construir uma espécie de esqueleto das cepas de H1N1 e H3N2”, explica Viviane. Para isso, é feita uma infecção combinada entre o vírus atenuado (PR8) e o vírus circulante (H1N1 ou H3N2) em um único sistema, que pode ser uma célula ou um ovo. Nesse processo, o objetivo é chegar a um rearranjo ideal. “Seis genes provenientes do PR8, que vão garantir a replicação com alto rendimento, e dois genes originários do vírus circulante, que asseguram a resposta imune do organismo”, completa.
Etapa 3: importação
Após o anúncio de atualização das cepas pela OMS começa uma corrida contra o tempo, já que as vacinas precisam ser disponibilizadas para a população antes da chegada do inverno – época em que os casos de gripe aumentam.
Caso haja necessidade (ou seja, se a vacina precisar ser atualizada de um ano para o outro), o material – cerca de 1 ml da cepa – é importado da Europa, Estados Unidos entre outros e chega ao Butantan um mês após a realização do pedido. Também é preciso trazer os reagentes das cepas – antígenos capazes de indicar a “potência” do imunizante, essenciais para as etapas de formulação e liberação das doses junto ao Ministério da Saúde.
Os Laboratórios Referência só começam a produzir os reagentes após a atualização da OMS. “Isso acontece porque eles têm dezenas de cepas no laboratório. Não é viável produzir a mesma quantidade de reagentes, sendo que apenas alguns serão utilizados anualmente”, explica Douglas.
Etapa 4: banco semente
Assim que chega ao Instituto Butantan, a amostra da cepa é enviada à Produção de Bancos Influenza, onde é feito um lote em pequena escala para amplificação do material importado, chamado banco semente.
Para isso, a cepa é misturada a uma solução e, depois, inoculada em ovos embrionados livres de patógenos. “Esses ovos são ainda mais controlados do que aqueles utilizados na produção de um Insumo Farmacêutico Ativo. Como não temos um produtor no Brasil, importamos a quantidade necessária”, conta Douglas.
Após a replicação viral, que dura alguns dias, o produto é coletado e fracionado em diversos criotubos que serão congelados. “A ideia é criar um estoque. Assim, caso a cepa se repita, não haverá necessidade de importá-la novamente. O material dura anos e anos, pois uma ampola rende vários lotes de produção”, completa Douglas.
Etapa 5: banco trabalho
Com uma parte do banco semente, inicia-se então a etapa de produção do banco trabalho, que dura cerca de 20 dias entre as etapas de produção e análise. Assim como na fase anterior, o objetivo é amplificar o material seguindo o mesmo processo de inoculação em ovos embrionados livres de patógenos, gerando um lote produtivo da cepa, composto por cerca de 300 criotubos.
A partir de então, o processo de produção deixa a planta de Produção de Bancos influenza e segue para a planta de produção dos monovalentes. Lá, uma ampola do banco trabalho será utilizada diariamente para a produção da solução de inóculo viral que será aplicada em cada um dos 500 mil ovos controlados, utilizados todos os dias na produção do imunizante.
As 80 milhões de doses fabricadas a cada campanha pelo Butantan demandam cerca de 60 ampolas do banco trabalho de cada cepa.
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