Pesquisadores do Laboratório de Ciclo Celular do Instituto Butantan identificaram novos candidatos vacinais contra o parasita Schistosoma mansoni, verme causador da esquistossomose. O estudo, que se baseou no uso do phage-display – técnica de biologia molecular que permite selecionar e isolar fragmentos de proteínas por meio da criação de uma biblioteca de genes - demonstrou que os candidatos vacinais foram capazes de conferir proteção a camundongos desafiados.
Os camundongos desafiados são aqueles que foram imunizados com o candidato vacinal e posteriormente infectados para avaliar se houve proteção contra a infecção.
A descoberta foi publicada no artigo Schistosoma mansoni vaccine candidates identified by unbiased phage display screening in self-cured rhesus macaques, veiculado na revista npj Vaccines do grupo Nature.
Sergio Verjovski-Almeida, liderança científica do Butantan, e Murilo Senal Amaral, pesquisador do Laboratório de Ciclo Celular
“A descoberta abre a possibilidade do desenvolvimento de uma vacina profilática [preventiva] efetiva contra essa parasitose que afeta mais de 200 milhões e mata cerca de 200 mil pessoas anualmente em todo o mundo, e para a qual ainda não há nenhuma vacina disponível”, afirma o pesquisador do Laboratório de Ciclo Celular Murilo Sena Amaral.
Em um estudo anterior, publicado na Nature Communications, a equipe de pesquisadores já havia descoberto que macacos rhesus infectados e desafiados com S. mansoni foram capazes de eliminar vermes adultos em infecções primárias, curando-se espontaneamente da infecção, e em seguida desenvolveram uma resistência robusta à reinfecção.
Na atual fase da pesquisa, os pesquisadores conseguiram identificar os candidatos vacinais usando uma biblioteca de fagos que continham fragmentos (peptídeos) de todas as cerca de 12 mil proteínas do verme. Os fagos foram incubados com amostras de plasma dos macacos rhesus auto-curados, coletadas no estudo anterior. Os anticorpos do plasma se ligaram a certos peptídeos dos fagos, que foram coletados, sequenciados e identificados. O trabalho fez parte da tese de doutorado da aluna Daisy Woellner-Santos.
“Construímos uma biblioteca de exibição de peptídeos em larga escala, usando a tecnologia de phage-display, abrangendo peptídeos longos, cobrindo pela primeira vez as sequências de todas as proteínas conhecidas do Schistosoma mansoni”, explica Sergio Verjovski-Almeida, liderança científica do Butantan.
Os pesquisadores explicam que o avanço da pesquisa foi fundamental para aprofundar a compreensão da resposta humoral contra alvos específicos que prejudicam o ciclo de vida do parasita dentro dos vasos sanguíneos dos macacos rhesus.
“Esta foi a primeira vez que o phage-display foi usado neste modelo contra a esquistossomose, o que abre a perspectiva do uso da técnica em estudos de outras espécies de parasitas causadores de doenças tropicais negligenciadas que, em conjunto, afetam cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde [OMS]”, destaca Amaral.
Tecnologia a favor
Nos últimos 20 anos, desenvolver uma vacina contra o parasita tem sido um desafio que envolveu diretamente cientistas do Butantan. Um dos passos iniciais foi o sequenciamento do conjunto de RNAs mensageiros do S. mansoni - o transcritoma do parasita - publicado em 2003 na Nature Genetics por um consórcio de pesquisadores que envolveu cientistas do Instituto. Com o conhecimento do transcritoma, formado por 12 mil genes, o desafio seguinte foi estudá-los na bancada como possíveis candidatos vacinais, sobretudo pela falta de uma tecnologia que permitisse otimizar o processo em larga escala, praticamente impossível de se estudar gene a gene.
Até que em meados de 2011 um estudo realizado na Universidade Harvard, dos Estados Unidos, utilizou a técnica de phage-display para estudar pessoas com doenças autoimunes. Nele, os pesquisadores norte-americanos estudaram o mecanismo por meio do qual o paciente desenvolve anticorpos contra suas próprias proteínas, avaliando com o phage-display quais anticorpos se ligavam a determinadas proteínas – o que ajudou desde então a se estudar novos medicamentos contra enfermidades autoimunes.
Agora, os pesquisadores do Butantan utilizaram a técnica de phage-display para identificar as proteínas do parasita que estavam sendo alvos dos anticorpos dos macacos e, assim, determinar quais poderiam ser usadas como candidatos vacinais.
“Selecionamos fragmentos [peptídeos] de seis proteínas identificados, e combinamos os peptídeos em um candidato vacinal. Quando os testamos em um ensaio de proteção de camundongos, eles foram capazes de gerar uma proteção de 25%. Agora estamos otimizando a formulação com diferentes adjuvantes para conseguirmos uma proteção maior”, afirma Murilo.
O próximo passo da pesquisa será testar a nova formulação em macacos rhesus e em camundongos. “Estamos trabalhando com outros setores do Butantan para otimizarmos a nova formulação e os testes”, ressalta Sérgio.
"A esquistossomose é a segunda doença parasitária mais impactante no mundo, por isso são necessárias medidas profiláticas", afirma Murilo Sena Amaral
Por que precisamos de uma vacina?
Além de ser uma doença que ainda atinge grandes contingentes de pessoas no mundo, faltam alternativas terapêuticas à esquistossomose. Há apenas um único medicamento indicado para tratamento, que foca em uma determinada proteína do verme. Por isso, já é documentado que os vermes estão se tornando resistentes à medicação, um risco sobretudo para as populações mais vulneráveis, já que a verminose é mais frequente em locais sem saneamento básico.
No Brasil, a esquistossomose é conhecida popularmente como “xistose”, “barriga d’água” ou “doença dos caramujos”. A transmissão ocorre quando o humano infectado elimina os ovos do verme por meio das fezes. Em contato com a água, estes ovos eclodem e liberam larvas que infectam caramujos, hospedeiros intermediários que vivem nas águas doces. Após quatro semanas, as larvas abandonam o caramujo na forma de cercarias e ficam livres nessas águas. O ser humano adquire a doença pelo contato com essa água contaminada. Duas a seis semanas após a infecção aparecem os primeiros sintomas, como tontura, coceira anal, endurecimento do fígado, febre, falta de apetite e diarreia, entre outros. Se não tratada adequadamente, a doença pode evoluir e causar hemorragia digestiva e levar à morte, segundo o Ministério da Saúde.
“A esquistossomose é a segunda doença parasitária mais impactante do mundo, ficando atrás apenas da malária. A própria OMS já disse que a chance de controlá-la com apenas uma terapia, como acontece atualmente, é muito baixa. Por isso, são necessárias tanto uma estratégia terapêutica quanto uma estratégia profilática”, afirma Murilo.
Outro ponto que vem aumentando a atenção sobre a doença e que ressalta a importância do oferecimento de uma vacina é a ocorrência dela e de outras verminoses em localidades onde antes elas não eram comuns.
“Há relatos de esquistossomose na ilha da Córsega, na França. A doença foi reativada em função principalmente das mudanças climáticas e do aumento do fluxo migratório. Apesar de serem típicas de países em desenvolvimento, porque dependem de uma série de condições de saneamento básico precárias, essas doenças estão ressurgindo em áreas não tão tropicais assim, justamente por conta da mudança ambiental e da exploração de áreas que antes não eram habitadas pelo ser humano”, conclui Sérgio.
"A esquistossomose está ressurgindo em áreas não tropicais por causa das mudanças climáticas", diz Sergio Verjovski-Almeida
Reportagem: Camila Neumam
Fotos: André Ricoy/Comunicação Butantan