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Criador do soro antiofídico específico, Vital Brazil é considerado até hoje um dos inventores mais notáveis do país

Carta que concedeu a patente do antídoto ao primeiro diretor do Butantan faz parte de um valioso arquivo histórico, agora acessível digitalmente para toda a população


Publicado em: 26/04/2024

Apenas dois dias separam a celebração do Dia Mundial da Propriedade Intelectual (26/4) da data que marca o nascimento do médico e patrono do Instituto Butantan, Vital Brazil (28/4/1865). Para além da coincidência histórica, o cientista é apontado pelo próprio Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) como um dos inventores mais renomados do país devido à criação do soro antiofídico específico – tratamento utilizado até hoje no cuidado de vítimas de envenenamento por picadas de serpentes. 

No início do século XX, os estudos conduzidos pelo sanitarista no Butantan resultaram na descoberta da especificidade antigênica, que demonstrou a necessidade de o antídoto possuir anticorpos específicos para a neutralização de toxinas inoculadas por serpentes de gêneros distintos – ou seja, para tratar uma picada de jararaca, o soro deve ser específico para combater a toxina da jararaca; para o envenenamento por cascavel, o soro precisa ser específico para a toxina da cascavel. À época, cerca de 5.000 pessoas morriam todos os anos no estado de São Paulo em decorrência de acidentes ofídicos.

 

Ampolas dos soros antiofídicos produzidos no Instituto Butantan na época da solicitação da patente

 

Em maio de 1917, Vital Brazil recebeu do governo o chamado “privilégio industrial” do soro antiofídico, em um importante aceno à sua descoberta. “A exigência de novidade sempre foi uma das principais características solicitadas. A concessão indica que o produto proposto foi considerado diferente de tudo o que existia até aquele momento”, explica a analista de propriedade intelectual do Escritório de Licenciamento e Inovação Tecnológica do Butantan Camila Monteiro Cruz – atualmente, o setor é responsável pelo depósito e gestão das patentes das tecnologias desenvolvidas pelos pesquisadores da instituição. 

 

Pedido de privilégio

Por mais que naquele período o Brasil ainda não contasse com um serviço especial e centralizado de propriedade intelectual, a Lei nº 3.129, vigente desde 14 de outubro de 1882, assegurava ao descobridor ou inventor a propriedade e o uso exclusivo da sua descoberta ou invenção. 

Segundo informações do Arquivo Nacional, ao pretender uma patente, era necessário que o inventor ou seu procurador depositasse no Arquivo Público um relatório lacrado em duplicata com todo o descritivo do item, assim como desenhos, modelos e outras amostras que demonstrassem o conhecimento exato do bem.

De acordo com os registros históricos do INPI, o relatório com o pedido de patente de “um novo processo para preparo de soros antipeçonhentos” foi depositado em 19 de dezembro de 1916 e contemplava quatro formulações diferentes de soro: o anticrotálico, contra veneno de cascavel; o antibotrópico, contra veneno de jararaca; o antielapídico, para as picadas de coral-verdadeira; e o soro antiofídico polivalente, uma espécie de “mistura” com as peçonhas dos três gêneros de serpentes, para ser usado naqueles casos em que não se sabia a procedência da espécie mordedora.

 

Imagem do documento original que concede a patente do soro antiofídico específico a Vital Brazil

 

“A iniciativa dá indícios de que além de cientista brilhante, Vital Brazil estava muito engajado com as questões da propriedade intelectual e tinha real conhecimento sobre a importância de sua invenção”, observa a diretora técnica do Museu Histórico do Butantan, Isabel Correia Batista.

Por fim, os pedidos eram lançados em um livro específico e o requerente recebia um número de ordem que assegurava ao inventor a prioridade sobre o invento. Depois, uma petição era encaminhada ao ministério competente, que ficava responsável por avaliar e deferir ou não a solicitação. 

Em menos de cinco meses, o processo referente ao soro antipeçonhento foi concluído e a patente recebeu o número 9.596. O termo foi outorgado em 9 de maio de 1917 pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio e assinado pelo então Presidente da República, Wenceslau Braz, com publicação no Diário Oficial da União no dia seguinte. O privilégio foi concedido pelo prazo de 15 anos. 

 

Camila Monteiro Cruz, do Escritório de Licenciamento e Inovação Tecnológica do Butantan, confere ampolas antigas de soro, disponíveis para visualização do público no Museu Histórico

 

Um século de mudanças

Ao longo desses mais de cem anos, naturalmente, as solicitações, os exames e os depósitos de patentes passaram por diversas mudanças. A criação do INPI, na década de 1970, foi um dos avanços mais expressivos. Vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, o órgão é responsável pelo aperfeiçoamento, disseminação e gestão do sistema brasileiro de concessão e garantia de direitos de propriedade intelectual para a indústria. 

Fato curioso é que mesmo até pouco tempo, para solicitar um pedido de depósito de patente era preciso encaminhar à autarquia duas cópias dos documentos em envelopes lacrados – processo bastante similar ao adotado na época de Vital. A comunicação com os depositantes também já foi realizada por meio da assinatura de uma revista impressa. “Com a digitalização das principais coleções do mundo e a democratização das ferramentas eletrônicas, a documentação em meio físico começou a perder espaço. Hoje, todo o processo é feito de forma online, no site do próprio INPI”, afirma Camila.

Outra mudança considerável diz respeito ao tempo médio para a concessão da propriedade intelectual. “Atualmente, o tempo necessário para conclusão de um processo pode chegar a 10 anos, mas há diversas iniciativas para reduzir esse tempo”, completa a analista.

 

Vital Brazil, patrono do Instituto Butantan, realiza extração de veneno de serpente no início do século XX

 

Patente repleta de significados

A carta-patente concedida a Vital Brazil pela criação do soro antiofídico faz parte do arquivo histórico do INPI, que abrange mais de 3.000 documentos datados de 1895 a 1929. Os termos foram recuperados por meio de um importante esforço de tratamento, digitalização e indexação, e desde o ano passado estão disponíveis para o público geral no repositório digital da instituição.

De acordo com Isabel Correia Batista, permitir o acesso a esse tesouro é um ato de inclusão científica, histórica e social. “Trata-se de um marco para a popularização da ciência. Ao disponibilizar patentes tão relevantes, o INPI contribui para preservar e divulgar a história da ciência e da tecnologia no Brasil, reconhecendo o trabalho de grandes cientistas, como Vital Brazil, além de outros inventores que trouxeram enorme contribuição para a sociedade.”

 

Isabel Correia Batista com parte da equipe de educadores do Museu Histórico do Butantan

 

A pesquisadora também lembra que tal concessão colocou um ponto final nos debates científicos encabeçados por Vital Brazil e Albert Calmette. Responsável por formular o soro contra o veneno da Naja tripudians, o cientista francês não reconhecia que seu produto era incapaz de neutralizar as atividades tóxicas de outras serpentes, negando a necessidade de especificidade dos soros antiofídicos – tese defendida pelo médico brasileiro e que se provou correta.

Além disso, a conclusão do processo foi essencial para a saúde pública brasileira e mundial, visto que, poucos meses após a concessão da patente do soro antiofídico específico, o então diretor do Instituto Butantan a doou ao Governo do Estado de São Paulo. Com isso, a inovação de Vital Brazil pode ser replicada sem qualquer custo, dando origem a uma indústria que beneficia majoritariamente populações pobres até hoje. “Foi um verdadeiro ato humanitário. Uma contribuição em prol da saúde pública que possibilitou o acesso de toda a população aos soros e que vem salvando milhares de vidas há mais de 100 anos”, finaliza a diretora do Museu Histórico.

 

Reportagem: Natasha Pinelli

Fotos: Acervo do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, montagem de Milena Martins/Comunicação Butantan (foto 2); Acervo Instituto Butantan/Centro de Memória (fotos 1 e 4); Marília Ruberti/Comunicação Butantan (foto 5); e Renato Rodrigues/Comunicação Butantan (foto 3)