Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
Aos 11 anos, Cristiane Schilbach Pizzutto já sabia o que queria fazer da vida: cuidar do bem-estar dos animais. Encantada pelo gorila Virgulino, morador do Zoológico de São Paulo desde a década de 1970, pediu à diretoria da instituição para trabalhar com ele, durante uma reunião agendada com a ajuda do pai. O sonho precisou esperar, é claro, mas foi realizado na vida adulta, quando concluiu sua formação em Medicina Veterinária pela Universidade de São Paulo (USP). De lá para cá, ela já trabalhou com onça-pintada, chimpanzé, girafas, peixes e até invertebrados, e se tornou uma das maiores especialistas em bem-estar animal e conservação do Brasil. Hoje, aos 52, assume a missão de cuidar das serpentes do Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEv) do Instituto Butantan.
Junto a uma equipe de especialistas, a médica veterinária vem se dedicando no último ano ao planejamento de viveiros e estações de bem-estar para as cobras – um universo totalmente novo para ela. As instalações fazem parte da nova sede do LEEv, inaugurada na última sexta (21) durante as comemorações dos 124 anos do Instituto Butantan. Com visitas guiadas, o complexo busca aproximar a sociedade da ciência e conscientizar as pessoas sobre a importância da conservação, em especial de serpentes ameaçadas como a jararaca-ilhoa, residente da Ilha da Queimada Grande (SP).
Cristiane Pizzutto é médica veterinária e responsável técnica do LEEv
Embora seja a primeira vez de Cristiane trabalhando com répteis, o desafio não a espantou: afinal, ela sempre foi determinada. Após o Ensino Médio, fez três anos de cursinho para entrar na USP – era lá, diziam, que precisava estudar para ter a chance de trabalhar no Zoológico de São Paulo. No primeiro ano da faculdade, conseguiu um estágio voluntário às quartas-feiras na clínica veterinária do zoológico. Ainda não trabalhava diretamente com Virgulino, mas ficou mais próxima de seu objetivo.
Em 1997, último ano da graduação, uma oportunidade de estágio nos Estados Unidos surgiu como um divisor de águas: durante dois meses, a jovem estudante acompanhou o treinamento de gorilas para coleta de sêmen no Omaha's Henry Doorly Zoo, em Nebrasca. O objetivo era usar técnicas reprodutivas para conservar a espécie.
“Eles trabalhavam com bem-estar animal e condicionamento para obtenção de amostras biológicas. Era algo totalmente novo. Lá, nasceu o primeiro gorila fruto de fertilização in vitro do mundo”
Segundo Cristiane, o condicionamento de animais que vivem em ambientes artificiais é essencial para permitir os cuidados veterinários e a coleta de amostras sem estressá-los. Ao armazenar o sêmen e demais materiais biológicos, os cientistas contribuem para a conservação das espécies, em especial aquelas ameaçadas de extinção, pois podem reproduzi-las e, em alguns casos, reintroduzi-las na natureza. Além disso, o condicionamento visa promover o bem-estar, por meio de estímulos e associações positivas.
Cristiane trabalhou voluntariamente durante oito anos para melhorar a vida do gorila Virgulino
Virgulino: um caso de sucesso
De volta ao Brasil ainda em 1997, a veterinária propôs ao Zoológico de São Paulo um projeto inédito de condicionamento para o gorila Virgulino. Como o primata vivia sozinho e a espécie é muito sociável na natureza, ele tinha diversos problemas comportamentais, o que dificultava o manejo. Determinada a melhorar a qualidade de vida do animal, Cristiane passou oito anos trabalhando voluntariamente com ele, usando ferramentas de enriquecimento ambiental, ensinando comandos e estabelecendo uma relação de confiança. Transformou seu recinto em uma verdadeira floresta, com muitas árvores, arbustos e pedras, além de uma plataforma alta para o primata subir.
Os resultados do treinamento eram visíveis, desde a melhora no comportamento ao brilho dos pelos. Com o passar do tempo, conforme o trabalho de Cristiane no Zoológico de São Paulo ganhava notoriedade na mídia nacional, chegando a ser pauta do Fantástico, a área de bem-estar animal – que ainda era incipiente no Brasil nos anos 2000 – foi conquistando espaço.
“No início, ficava observando Virgulino de longe todas as manhãs. Após seis meses, pude me aproximar dele, e aí os treinamentos realmente começaram”
Uma vez que conseguiu ficar próxima à grade do recinto, em apenas alguns dias Cristiane já estava olhando nos olhos dele – na natureza não se deve fazer contato visual, porque gorilas entendem isso como um desafio. Com o condicionamento, os dois estabeleceram uma relação de confiança que tornou o olho no olho possível. “Ele sabia que eu traria momentos de interação positiva. Ele começou a aprender as partes do corpo, a se comunicar por sinais, e era recompensado por isso”, conta Cristiane.
Ela relembra um dia especial em que levou figos para Virgulino – o fruto era seu favorito e considerado a “maior recompensa”. O primata ficou tão contente que correu até a bandeja de alimentos, jogou tudo no chão e retirou a banana mais bonita para presenteá-la.
“Fiquei muito feliz em conseguir melhorar a vida de um animal que me motivou a ser veterinária desde criança”
Paralelamente, Cristiane fazia mestrado em Anatomia na USP, e logo emendou o doutorado em Reprodução Animal na mesma instituição. Sua tese demonstrou que o enriquecimento ambiental melhora parâmetros hormonais e comportamentais de primatas não humanos, mostrando que o bem-estar influencia até mesmo na reprodução. Além do gorila, ela conduziu testes com um orangotango e 12 chimpanzés. O pioneirismo e relevância da pesquisa lhe renderam uma indicação ao Prêmio CAPES de Tese e ao Grande Prêmio CAPES de Tese, em 2006.
Trabalho de condicionamento e bem-estar com o gorila do Zoológico de SP (Foto: arquivo pessoal)
O futuro da conservação
Depois que Virgulino morreu, em 2005, Cristiane seguiu firme na pesquisa e no ensino sobre bem-estar e conservação animal. Fez pós-doutorado, tornou-se professora de Reprodução de Animais Silvestres na USP e professora orientadora da pós-graduação em Reprodução Animal da mesma instituição, além de coordenadora do curso de pós-graduação em Bem-Estar, Manejo e Comportamento de Animais Silvestres e Exóticos do Instituto de Saúde e Psicologia Animal (INSPA). Também começou a fazer parte do grupo de pesquisa do Instituto Reprocon, onde desenvolve biotécnicas reprodutivas para espécies ameaçadas, como a onça-pintada, raias e tubarões. Em 2022, a médica veterinária publicou o primeiro livro em português sobre bem-estar animal totalmente focado em enriquecimento ambiental, intitulado Fundamentos do Enriquecimento Ambiental.
“Eu já ministrei muitos cursos e sempre pensava que, se em cada plateia, uma única pessoa decidir trabalhar com bem-estar animal, já valeu a pena”
Em quase 30 anos de carreira, Cristiane foi contemplada com uma série de reconhecimentos, tendo sido indicada ao Prêmio Internacional Animal Welfare pela World Veterinary Association (2018) e recebido o Prêmio Hannelore Fuchs de maior destaque de atuação na Medicina Veterinária, na área de Comportamento Animal (2019).
Em 2022, Cristiane publicou um livro sobre bem-estar animal e enriquecimento ambiental
A especialista considera sua principal missão elucidar que bem-estar e conservação caminham juntos. “Se eu proporciono um ambiente funcional e adequado, o animal será influenciado positivamente do ponto de vista genético, e essa informação é passada por até duas gerações. Isso é essencial para incluí-lo em um programa de conservação e reprodução, por exemplo, que visa aumentar a variabilidade genética e salvaguardar uma espécie”, explica.
O propósito desse esforço é, em última instância, a preservação das espécies. O chamado vórtex da extinção acontece quando populações de espécies que antes se encontravam e reproduziam entre si passam a ficar isoladas, por fatores como desmatamento e urbanização. Quando a reprodução acontece somente no mesmo grupo, não há variação de genes, e os animais ficam mais vulneráveis e suscetíveis a doenças e à infertilidade. Daí a importância da variabilidade genética.
Segundo a especialista, o enriquecimento ambiental é tão importante para os répteis quanto para os mamíferos
Dos primatas às serpentes
No início de 2024, Cristiane se viu diante de uma oportunidade desafiadora: atuar como médica veterinária responsável pelo Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEv) do Butantan, onde passaria a trabalhar com o bem-estar de répteis, em especial as serpentes. Ela embarcou confiante na nova fase, certa de que sua vasta expertise com diferentes espécies seria fundamental. “Estou envolvida em muitos grupos de pesquisa e temos feito grandes descobertas na área de conservação e reprodução. Acredito que esse conhecimento irá agregar muito ao Butantan e poderemos fazer um trabalho inovador”, diz.
Segundo a veterinária, existe um mito de que os répteis não “sentem” da mesma forma que os mamíferos. Mas esses animais são, sim, capazes de responder positivamente às mudanças no ambiente. Prova disso é o enriquecimento ambiental que tem sido aplicado com serpentes e lagartos no Museu Biológico do Parque da Ciência Butantan pelo biólogo e tecnologista em manejo animal Lucas Simões Lima, que acaba de se tornar aluno de mestrado de Cristiane.
“Cabe a nós entender a biologia de cada espécie e como ela se comunica com o ambiente para criar um local que possa desencadear respostas positivas. Se eu coloco um animal em um ambiente que não é adaptado para ele, ele vai ficar estressado, vai ter um comprometimento dos seus níveis de glicocorticoides, e isso vai influenciar direto na reprodução”, explica a especialista.
Trabalho da médica veterinária ganhou notoriedade internacional
Em novembro do ano passado, Cristiane foi uma das palestrantes do Congreso Internacional por una conservación, organizado pelo Parque de Conservação Piscilago Colsubsidio, na Colômbia. O nome do evento foi uma homenagem ao artigo One Conservation: the integrated view of biodiversity conservation, publicado pela médica veterinária em 2021 no periódico Animal Reproduction. O estudo propõe integrar a conservação ex situ (em ambientes artificiais) à in situ (no habitat natural). O convite para o evento foi uma consagração da pesquisa de Cristiane, e um exemplo do que se pode alcançar com o trabalho em equipe.
“Ao mesmo tempo que somos os maiores inimigos da nossa biodiversidade hoje, somos a única salvação. Temos que usar nosso conhecimento e unir forças – conservação não se faz sozinho”
Viaje pelo mundo das serpentes e aprenda sobre conservação
Interessados em visitar as novas instalações do LEEv podem se inscrever no site do Parque da Ciência. As visitações guiadas para o público geral estarão abertas a partir de 25/2. Aproveite!