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Como as serpentes perderam as pernas? Entenda a explicação da ciência para essa mudança

Parentes dos lagartos, as cobras nem sempre tiveram o corpo tão alongado e sem patas que as torna únicas no reino animal


Publicado em: 13/08/2025

Reportagem: Guilherme Castro
Ilustrações: Manu Ferreira

As serpentes circulam pela Terra há mais de 130 milhões de anos. Isso quer dizer que elas são animais muito antigos: para efeito de comparação, os vestígios mais remotos do surgimento do Homo Sapiens no continente africano datam de cerca de 300 mil anos atrás. Nesses milênios todos, elas passaram por diversas adaptações evolutivas até adquirir o corpo alongado e sem pernas que possuem hoje. É isso que apontam as análises filogenéticas, estudos que servem para explicar o caminho evolutivo das espécies.

Os cientistas acreditam que, antes de terem a estrutura óssea comprida pela qual são conhecidas, as cobras andavam pela superfície terrestre com o auxílio de membros anteriores e posteriores – como fazem até hoje os lagartos, seus parentes da ordem Squamata. Mas o que levou esses membros a desapareceram? Há duas hipóteses. 
 

Ilustração de cobra na terra com patas

 

Do subterrâneo à superfície X da terra à água

Ainda não há resposta definitiva para garantir que a seleção de habilidades positivas para a sobrevivência das serpentes foi resultado de uma adaptação à vida no subterrâneo ou na água – mas a segunda hipótese tem perdido adesão na comunidade científica. Por outro lado, há um ponto comum entre as duas teorias: os olhos das serpentes.

Os lagartos possuem células na retina que são utilizadas para a visão noturna, os bastonetes. Eles também possuem células visuais que são úteis na visão diurna, que apresentam mais acuidade e detalhamento das cores, denominadas de cones. As serpentes, além de possuírem cones e bastonetes, possuem também um terceiro tipo de célula: os cones duplos. 

“O olho de um lagarto terrestre é muito diferente do olho de uma cobra: para focar, o cristalino – que é uma lente – se deforma. Já o da serpente é rígido e vai para a frente e para trás quando ela foca”, explica o biólogo e pesquisador científico do Laboratório de Ecologia e Evolução do Instituto Butantan Otávio Augusto Vuolo Marques.

Especula-se que durante os muitos milênios vivendo em ambientes com pouca luz, os olhos das serpentes ancestrais foram sendo selecionados negativamente, por não terem muito uso, até se tornarem uma versão vestigial com capacidade de visão limitada. É algo similar ao que ocorreu com as anfisbenas, igualmente répteis escamados: por viverem sob a terra, elas são quase cegas e possuem a visão adaptada a ambientes com pouca iluminação. Só no retorno das serpentes à superfície é que teria acontecido a total reconstrução do sistema visual – as pressões seletivas evolutivas beneficiavam as serpentes que melhor enxergavam. 

A nova formação dos olhos das serpentes se deu sobre uma base morfológica e genética diferente da dos seus ancestrais, o que fez com que os órgãos fossem reestruturados de forma distinta dos demais animais, mesmo os lagartos.

“Quando as serpentes voltaram a usar a superfície, aquelas que tinham um pouco mais de sensibilidade à luminosidade foram favorecidas novamente. Mesmo que fosse uma diferença pequena, como identificar melhor claro e escuro, já lhe dava vantagens para fugir de um predador ou encontrar uma presa para se alimentar, o que levou a uma nova seleção positiva dos olhos”, complementa Francisco.

Para os cientistas que estudam a hipótese de origem aquática das serpentes, a visão que elas possuem hoje pode ser resultado de respostas adaptativas às necessidades embaixo d’água. Isso porque alguns peixes apresentam características oculares parecidas, como o cristalino que se desloca para a frente e para trás, por exemplo.

 

Ilustração de cobra dentro da água com resquício de patas

 

Vestígios do passado

Durante seu processo de adaptação todas as serpentes perderam a cintura escapular, ao mesmo tempo em que muitas também perderam a cintura pélvica, responsáveis por articular os membros anteriores e posteriores respectivamente. Por outro lado, certas linhagens conservaram vestígios ósseos desses órgãos até hoje.

Entre as espécies que apresentam vestígios de cintura pélvica, há as que possuem esporões externos, um de cada lado da cloaca – esses vestígios dos membros perdidos foram reaproveitados pela evolução e hoje auxiliam no processo de reprodução como estimulantes. Um exemplo é a jiboia: o macho fricciona seu esporão no corpo da fêmea durante o acasalamento. 

Esse fenômeno é chamado de diferenciação evolutiva: um ancestral comum com patas deu origem a linhagens diferentes de animais alongados e sem membros anteriores ou posteriores, alguns com vestígios discretos de patas, outros sem. 

Dentre as famílias em que não sobrou vestígio pélvico algum, houve uma seleção que gerou as linhagens de serpentes que hoje possuem crânios com ossos muito móveis e dentição especializada para inoculação de veneno (um recurso que permite aos animais ampliar sua diversidade alimentar). Nessa categoria se enquadra a família Viperidae, um dos maiores grupos de serpentes do mundo. Dela fazem parte as jararacas, cascavéis e outras cobras peçonhentas que conhecemos hoje.


Referências bibliográficas:
MARQUES, O.; MEDEIROS, C. R.; AZEDO, W. S. Nossas incríveis serpentes: caracterização, biologia, acidentes e conservação. Cotia; Ponto A; 2018. 76 p. ilus.

HUBLIN, J.-J. et al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens. Nature, v. 546, n. 7657, p. 289–292, 1 jun. 2017.