Era 15 de maio de 2010 quando um incêndio atingiu um dos diversos prédios do complexo do Instituto Butantan e destruiu boa parte de sua coleção de serpentes, além de espécimes de aranhas e escorpiões. Na época, o prejuízo foi considerado incalculável: o acervo era o maior do mundo, tendo sido iniciado em 1901, quando o próprio Instituto foi criado. Agora, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o Butantan vai investir na recuperação, ampliação e qualificação de seu acervo, o que vai contribuir para a retomada de pesquisas científicas vinculadas à coleção.
O pesquisador e curador da coleção, Felipe G. Grazziotin, é o autor do projeto “Recuperação, modernização e expansão da Coleção Herpetológica do Instituto Butantan através de estudos integrativos sobre sistemática e evolução de serpentes neotropicais”.
“A ideia principal do projeto é recuperar essa coleção utilizando as novas tecnologias que surgiram, como a tomografia computadorizada e o sequenciamento de alto rendimento, disponibilizando informações genéticas e imagens 3D da musculatura e da osteologia para acesso público”, explica.
De acordo com Grazziotin, mais de 80% do antigo acervo foi perdido no incêndio de 2010. A coleção tinha o registro da distribuição de quase todas as espécies de serpentes do território brasileiro. Também reunia um banco de tecidos importante para o estudo da genética e uma coleção de glândulas, órgão onde ocorre a produção da peçonha, que foi totalmente consumida pelo fogo.
A pesquisa de Grazziotin será focada nas serpentes dos gêneros Bothrops e Bothrocophias, popularmente conhecidos como jararacas, que ocorrem na América do Sul, e contará com o apoio de uma rede internacional de pesquisadores. Além das cinco regiões do Brasil, o projeto vai buscar serpentes na Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.
“Vamos para todas as localidades tipo, que é o local onde o espécime que originalmente serviu para descrição da espécie foi coletado. Lá, realizaremos um esforço de campo para coletar novos exemplares. Depois, vamos trazer as serpentes para o Butantan para fazer o escaneamento completo por tomografia computadorizada, o sequenciamento do genoma e o estudo dos venenos. Os dados obtidos serão disponibilizados publicamente a quem se interessar e precisar”, explica o curador.
Após a coleta das serpentes em campo, a equipe do projeto também irá desenvolver estudos de evolução, para entender como as características fenotípicas foram se alterando ao longo da história, e de sistemática, que buscam descrever espécies novas e as relações entre elas.
Informações públicas
No futuro, todo esse trabalho vai permitir que o Butantan tenha novamente um banco de dados qualificado disponível na coleção em seu repositório digital e, consequentemente, ajudar pesquisadores com informações completas sobre as diversas espécies nas regiões estudadas.
Com o mapeamento das informações do genoma e do transcriptoma das glândulas de veneno, o projeto vai auxiliar no entendimento de como essas serpentes se alimentam, como se reproduzem, o estado de conservação, características do veneno e se o soro do Butantan é eficaz para a picada de possíveis jararacas ainda não descritas que podem ser encontradas – por exemplo.
“Hoje em dia, com a facilidade das novas tecnologias, nós podemos integrar informações obtidas dos genomas, transcriptomas das glândulas de veneno, que é usado para o mapeamento da molécula de RNA, e dos proteomas das peçonhas, que refere-se ao grupo de todas as proteínas de um tecido, para criar um grande conjunto de dados que podem ser estudados por meio de análises bioinformáticas”, diz Grazziotin.
A expectativa é que o projeto também ajude a formar novos profissionais para estudar a biodiversidade brasileira e sul-americana, que segundo o pesquisador, ainda são pouco conhecidas.
“O registro da biodiversidade é de máxima importância para que possamos encontrar alternativas para superar os desafios em períodos de crise ambiental ou de saúde pública. A coleção também tem esse papel de servir como um repositório de informação para a tomada de decisão pelas sociedades”, completa.
O projeto de recuperação do acervo do Butantan foi aprovado pelo Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA/FAPESP) e será 100% financiado pela FAPESP. O prazo de realização da ação é cinco anos.
Mais de 100 anos de história perdidos
Em 2010, a Coleção Herpetológica do Butantan contava com aproximadamente 96 mil espécimes de serpentes. Destes, mais de 1.200 eram espécimes tipo, ou seja, exemplares que foram utilizados na descrição das espécies. Após o incêndio, apenas 299 tipos foram recuperados. Inclusive, muitos não podem mais ser manuseados por conta da fragilidade após o fogo. No início dos anos 2000, a coleção de tecidos e glândulas de veneno representava uma das maiores coleções desse tipo no mundo.
Outros exemplares danificados representam um registro histórico único das espécies que viviam em regiões que foram completamente alteradas pelas ações do ser humano no meio ambiente. Esses não podem ser repostos ou substituídos porque foram extintos localmente ou completamente por conta da expansão agropecuária e urbana.
Reportagem: Mateus Carvalho
Fotos: Renato Rodrigues