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Vozes do Butantan: estudante de Engenharia nascido em Angola, estagiário se surpreendeu ao descobrir a própria cor no Brasil

Márcio, que atravessou o oceano atlântico para se tornar engenheiro em terras brasileiras, cresceu na carreira no Butantan e está prestes a conquistar o tão sonhado diploma


Publicado em: 18/11/2025

Reportagem: Beatriz Milanez 
Fotos: Renato Rodrigues 
 

Márcio Camuto – com “M”, ao contrário do veterano repórter conhecido pelo bordão “alô, alô, minha gente” – é um jovem bom de papo: puxa assunto, gosta de conhecer outras pessoas. Diz ele que, do Butantan, conhece quase todo mundo. Ainda assim, o jovem de 23 anos se questiona: como as pessoas o classificam? “Me veem como um jovem? Um estudante? Um trabalhador? Ou apenas um homem negro passando?”

Nascido em 15 de março de 2002 na cidade de Benguela, Angola, Márcio teve uma boa infância: rodeado pelos seis irmãos e pelos primos, foi criado pelos avós, Maria e Franco, e pelos pais – a mãe, Elisa, farmacêutica; e o pai, Antônio, falecido no começo deste ano, era policial.  


 

Cidade litorânea, Benguela ofereceu ao jovem Márcio mais do que calor e água salgada: foi lá que ele se dedicou aos estudos com a ideia de ter, quando crescesse, a mesma profissão do então presidente de Angola, José Eduardo dos Santos  – engenheiro de petróleos. Determinado a seguir essa mesma carreira e com inclinação para exatas, o jovem foi aprovado para cursar o Ensino Médio junto ao Técnico em Química e se apaixonou pela área. Quando estava prestes a terminar o curso, já no final da adolescência, Márcio recebeu uma proposta de um tio, Parson, que morava no Brasil há sete anos: acompanhá-lo em terras sul-americanas e aqui fazer a graduação. 

“Sempre gostei do Brasil, da cultura brasileira. Em Angola, consome-se muito conteúdo brasileiro. Somos vizinhos separados por mar.” Ainda em Benguela, ele costumava assistir desenhos, novelas e ouvir música brasileira. “Malhação”, “Chica da Silva” e “Avenida Brasil” estão entre as obras que mais marcaram sua infância. Na música, ele é fã do trap brasileiro, adora Matuê. “Aqui estou em casa”, brinca. 

Em 2021, no auge da pandemia de Covid-19, Márcio desembarcou em São Paulo. Mesmo compartilhando o português como língua-mãe, ao chegar o jovem já sentiu a diferença linguística. Não só no sotaque, mas muitas palavras têm um significado em Angola que não têm no Brasil – foram várias as situações de confusão com as palavras. “Lá também temos as línguas nacionais, como umbundu, quimbundo e Tchokwe”, explica. 
 


O primeiro ano, Márcio passou morando com o tio – este logo voltou para Angola após terminar a especialização em toxicologia que cursava na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No ano seguinte, 2022, o jovem iniciou a graduação em Engenharia Química na Faculdade das Américas. Pouco após iniciar o ensino superior, soube do programa Jovem Aprendiz e decidiu ir em busca do primeiro emprego em terras estrangeiras. Em agosto daquele ano, ele participou do processo seletivo para o Instituto Butantan. Assim que foi aprovado, Márcio já sabia o tamanho do feito que tinha alcançado. “O motivo de existir do Instituto é muito nobre, fiquei muito orgulhoso de ter sido selecionado. Meu tio, que já conhecia o Brasil e já conhecia o histórico, ficou bem feliz por eu estar aqui também”, revela.  

Como aprendiz, o jovem Márcio trabalhou na área de Pesquisa e Desenvolvimento de Projetos, em Sistemas da Qualidade, até o final de 2023. Para ele, conhecer outros contextos corporativos foi uma virada de chave: passou a ter mais responsabilidade e começou a entender o porquê dos afazeres. "Basicamente, aprendi a trabalhar aqui. Eu acompanhava estudos para determinar o comportamento da vacina ao longo do tempo”, conta. Ainda como aprendiz, Márcio conheceu o programa de estágio do Butantan e foi aprovado para atuar no setor de Desenvolvimento Industrial – onde está há mais de um ano.

 

 

A cor da questão 

Agora, no quarto ano de engenharia, a rotina do jovem é dividida entre estudos e trabalho: das 9h às 16h ele é estagiário; depois, veste a skin de estudante e se prepara para mais um dia de aula. “É bem puxado, mas é tudo por um objetivo, por um sonho. Acho que vale a pena.” Se, quando chegou ao Brasil, ele ficou impressionado pela forma como as pessoas da metrópole andavam rápido, agora, o jovem já se considera quase um paulistano: sempre na correria.

Mais confortável com a cidade que nunca dorme, ele vê em São Paulo uma dualidade que não via em Benguela: um lugar muito bom e, ao mesmo tempo, muito ruim. “Parece que as pessoas vivem muito no automático, não têm tempo de se sentar, respirar um ar puro, refletir um pouco, é tudo muito rápido. É muita informação, muita dopamina para o cérebro, mas eu gosto muito da multidiversidade e da multiculturalidade que existe aqui”, explica. Foi em solo paulistano que Márcio conheceu uma variedade de rostos: nordestinos, latino-americanos, estadunidenses. “Só São Paulo proporciona isso e, de certa forma, facilita para quem vem de fora, como é o meu caso. Me senti realmente muito acolhido aqui.” 

A dualidade da cidade vem em outro aspecto: São Paulo pode ser um lugar hostil, onde o racismo ainda se faz presente no dia a dia. Aos poucos, o jovem angolano foi percebendo as estruturas sociais. “Com base na convivência, entendi como funciona o elitismo aqui. Comecei a ler mais sobre essas questões, procurando me entender mais. Só descobri que eu sou preto aqui. Não que eu não sabia que eu sou preto, mas foi aqui que descobri isso como uma questão.” Quando ele chegou ao Brasil, não imaginava que seria diminuído pela cor da pele. Até que os olhares, o julgamento estampado no rosto dos outros começaram a incomodar. “Eu não saio de chinelo na rua”, diz. 

À noite, quando termina a aula, Márcio tira um tempinho para se dedicar aos exercícios físicos. Ele fica na academia até umas 23h, quando fecha, e depois segue para casa, que fica perto. Numa dessas andanças, o jovem foi parado a polícia pela primeira vez: mãos ao alto e fuzil na janela da viatura. “Até eu me explicar, dizer que eu não fiz nada, que moro aqui e mostrar os documentos, foi complicado. É uma subjugação da pessoa negra, principalmente retinta, como eu.”

“O racismo é algo deplorável – se sentir superior pela diferença racial é deplorável. Mas o Brasil tem leis.”  

 

 

A boa luta 

Para quebrar o ritmo frenético do dia a dia, Márcio gosta de procurar lugares para se divertir e tentar voltar, pelo menos um pouquinho, ao berço de origem: eventos afros, um barzinho, coisas que envolvam música e arte de maneira geral movimentam sua vida. As chances de encontrar o jovem na Black Nation, festa que celebra a cultura preta em São Paulo, são altas. Se ele decide por ficar em casa, passa boa parte do tempo vendo documentários de fatos aleatórios.

Com tanto a viver, Márcio ainda não faz planos longos, prefere viver o momento. Para os próximos cinco anos, o que ele mais quer é conquistar o diploma de engenheiro químico. A ideia do Trabalho de Conclusão de Curso, inclusive, ele já tem: projetar uma planta piloto de fábrica de sabão a partir do óleo residual de cozinha. Para depois da graduação, no entanto, Márcio sabe que a disputa é outra. “É linearmente regressivo: quanto mais alto o cargo, menor é a diversidade racial. É aquela coisa de representatividade. Se nos cargos mais baixos são quase sempre todos negros, de alguma forma eu sinto que facilmente estaria no lugar deles.” 

Por ora, Márcio não pensa em deixar o Brasil. Ele quer se estabelecer aqui, construir bases. Enquanto isso, usa da tecnologia para matar a saudade de casa: faz chamadas de vídeo diariamente com a mãe. “Eu tenho o desejo de dar para a minha família a mesma oportunidade que meu tio me deu. Poder ajudar a minha família a ter uma formação superior, dar um apoio financeiro e emocional para que meus primos possam vir e se formar da mesma forma que eu.” 
 

 

Tudo isso, sem perder de vista a boa luta. Neste ano, Márcio deu uma palestra para o público interno do Instituto Butantan com o tema “A Minha Cor Me Define”. A ideia do jovem estagiário com a apresentação foi deixar as pessoas “um pouco desconfortáveis” sobre o racismo, a fim de tentar desconstruir alguns conceitos no ambiente corporativo. 

“Não tem por onde fugir. É uma guerra a se enfrentar, começando pela consciencialização, por compartilhar, entender que é uma questão. É preciso nos sentarmos e nos entendermos todos. Não somos só nós, pessoas negras. É sobre todos nos olharmos como pessoas. O que tem que se fazer é não parar de ter essa mensagem constante.”

No dia da palestra, Márcio vestiu um terno de um tom azul intenso, quase como veludo. O gosto pela moda não é recente: com um estilo que ele define como “casual chique”, o jovem usa das roupas como meio de expressão. “Considero que também seja algo que tem a ver com ser negro, porque nós temos uma compulsão por estar bem apresentados, por medo de sermos julgados. As pessoas sempre reparam, especialmente no ambiente corporativo. Temos uma necessidade de passar alguma coisa além. E aumenta a autoestima.”

Celebrado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra faz referência à morte de Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares. Ter a data marcada no calendário como um feriado nacional é um marco histórico e recente: a Lei nº 14.759 foi oficializada apenas em 2023. O racismo, no entanto, segue sendo uma questão diária. Colocar em pauta formas de combater o preconceito racial, de buscar entender como contribuir para tornar a sociedade um pouco melhor, é algo a se fazer todos os dias, por cada um de nós. “É preciso ter essa consciência racial. Essa consciência humana. Essa consciência étnica”, reforça Márcio.