No final dos anos 90, a então professora de biologia Glaucia Colli Inglez procurava uma forma de estimular seus alunos do ensino médio a gostar de ciências. Algo que quebrasse a monotonia da leitura do material didático e da prática de exercícios repetitivos, em uma época sem tablets e smartphones.
Então seu irmão Walter Colli se lembrou dos antigos kits de ciências criados pelo médico, pesquisador, educador e bioquímico Isaias Raw (1929-2022), com quem trabalhou na Universidade de São Paulo, e sugeriu que Glaucia fosse falar com o bioquímico no Instituto Butantan, onde ele atuava.
Glaucia Colli Inglez em frente à fachada do Museu de Microbiologia: mais de duas décadas de trabalho dedicadas ao desenvolvimento do espaço
Ao visitá-lo, Glaucia recebeu uma proposta inusitada: ela poderia fazer experimentos contidos em alguns kits de Microbiologia para Escolas, criados por Isaias na década de 70, desde que os modernizasse. A educadora aceitou o desafio e começou a fazer as atividades em sala de aula onde naturalmente foi atualizando-as.
Para a sorte da professora e dos alunos, a ideia foi incentivada pela diretora Anna Maria Pimentel, da antiga escola Mutirão, em Cotia (SP), onde Glaucia trabalhava. Por lá, ela fez diversos experimentos com os estudantes, alcançando o objetivo de tornar as aulas mais atrativas.
“O professor Isaias me deu uma pasta cheia de papéis com histórias para eu transformar em experimentos. Fui aplicando na escola ao longo do ano, incluindo algumas coisas, tirando outras, até realizar tudo o que ele propôs”, conta.
A ideia deu tão certo que Isaias comprou novos materiais para a criação de outros kits desenvolvidos por Glaucia a partir de novas ideias. Assim se formou uma bela parceria em prol da educação em ciências.
“Ele queria doar esse kit de experimentos, que chamamos de 1 porque foi o primeiro, aos professores que trouxessem seus estudantes para realizarem atividades no Laboratório didático do Museu de Microbiologia, idealizado por ele e então em construção no Instituto Butantan”, lembra.
O que Glaucia não esperava era que a sua vontade de transformar o ensino de ciências rendesse tantos frutos. Assim que o Museu de Microbiologia, Micróbios e Vacinas do Instituto Butantan (MMB) foi inaugurado em 2002, Isaias a chamou para ser sua coordenadora pedagógica.
O local era a personificação de um sonho do pesquisador: um espaço lúdico onde os visitantes poderiam aprender conceitos básicos de ciências, a partir dos microrganismos. A ideia lembrava as aspirações de Glaucia, que aceitou o convite mesmo sem nunca ter trabalhado em um museu.
“Ele realmente confiou em mim, até mais do que eu. Eu me dediquei de corpo e alma para manter esse patrimônio e os ideais do Isaias. Sou muito grata por isso, pois deu um novo rumo à minha vida profissional”, afirma.
Isaias morreu aos 95 anos em dezembro de 2022. Para homenagear seu legado, Glaucia criou a exposição fotográfica temporária “Isaias Raw: o homem que tinha o vírus da pressa”, e com a colaboração de membros da equipe do museu, a exposição temporária “Coleção - Os Cientistas, Memórias e Reencontros”.
“A ideia do professor Isaias Raw de criar o Museu de Microbiologia foi mostrar que o Butantan, além das pesquisas com cobras e soros, também focava na importância de evidenciar, por meio da educação, a produção de vacinas e a vacinação. Ele achava que tinha que mostrar esse lado importante do Instituto”, conta.
Orgulhosa, mostrando uma das exposições que ocupou recentemente o Museu de Microbiologia
Como tudo começou
De 2003 em diante, a partir das solicitações de Isaias, foram elaborados cinco kits de experimentos. O " Experimentos com Microrganismos", que ensina noções de higiene e assepsia para o público infantojuvenil, o kit 3 “Sorte ou Azar”, que dá noções de probabilidade a adolescentes, entre outros.
Um destes kits foi feito com a ajuda de Gabriela, filha de Glaucia, que se propôs a ajudar a modernizar o enredo da história de um deles, principalmente depois de perceber que não se encaixaria mais nos dias atuais. No kit “Polícia Científica”, dos anos 70, indicado para maiores de 7 anos, os cientistas mirins precisavam desvendar um crime ocorrido com um caçador de passarinhos que havia sido morto misteriosamente na floresta. As crianças o encontravam “com as canelas esticadas”, e precisavam desvendar o assassinato. “Ela disse: ‘ô, mãe, essa história não é muito politicamente correta. Pergunta para o professor se podemos reescrever alguns trechos'”, conta Glaucia ao relembrar a surpresa da filha.
A nova história se baseou em um clube de ciências no qual um grupo de jovens desvenda mistérios, sem caçadores de animais ou violência. “A Gabriela deu esta ideia sem saber que a formação de um clube de ciências era um sonho antigo do Isaias, que ele não tinha conseguido concretizar”, conta Glaucia. Ele ficou muito feliz e a sagacidade de Gabriela teve uma recompensa: ela recebeu carta branca do professor para mudar a história e uma pequena compensação financeira para reformular o texto em pequenas histórias investigativas.
Na sequência surgiu ainda o kit “Pasteur e a Simetria das Moléculas e dos Vírus”, que permite estuda as estruturas tridimensionais de cristais, construir modelos e constatar seu efeito sobre a luz polarizada. Ao entender este fenômeno que permitiu desvendar a estrutura tridimensional da molécula de DNA, em 1953, o aluno compreende melhor a organização dessa molécula que existe em todos os seres vivos inclusive nos microrganismos.
Glaucia fez ainda outro kit, o “Espelhos, Simetria, Conjuntos e Classificação”, em parceria com o amigo, professor e ex-diretor do Centro de Desenvolvimento Cultural do Butantan Henrique Moisés Canter. Por meio da realização de uma série de atividades lúdicas, como a montagem de um caleidoscópio, o jovem que usar o kit pode entender conceitos de simetria e noções de conjuntos até chegar às chaves de classificação biológica. O kit é indicado para crianças e adolescentes a partir dos 12 anos.
“O que faço, faço porque gosto, sempre fui educadora desde que me formei. Uma vez atendi umas senhoras estrangeiras que disseram: ‘nossa, se eu tivesse tido uma professora que ensinasse desse jeito, eu teria gostado de ciências”, lembra.
Realizada em facilitar a divulgação científica paras crianças, adolescentes e adultos que passam pelo local
Museu inclusivo
Inquieta, Glaucia mantém o propósito de fazer com que a ciência seja atraente para todos os públicos, e, ao longo dos anos, junto à equipe de educadores do Museu de Microbiologia vem tornando o museu mais inclusivo. Com o espaço “O Mundo Gigante dos Micróbios”, crianças podem aprender, por meio de jogos virtuais, sobre os benefícios propiciados pelos microrganismos no processo de fermentação dos alimentos, sua diversidade de formas e os diferentes ambientes em que eles se encontram.
Para os maiores, ela participou da montagem da Praça dos Cientistas, também ideia de Isaias, espaço onde há bustos e a biografia de cientistas cujos trabalhos foram importantes para o avanço da microbiologia e da imunologia.
No Museu há também pontos específicos para acessibilidade como QR Code, equipamento para cadeirantes poderem observar pelo microscópio com mais facilidade, um carrinho denominado MicroToque com a maquete do museu e quatro modelos representativos de quatro grupos de micróbios distintos, indicado para pessoas com deficiência visual.
“Uma cena que me marcou muito foi quando uma senhora cadeirante, que conseguiu acessar o microscópio em uma bancada mais baixa, me disse estar muito agradecida, pois tinha visto um mundo que jamais havia pensado ver”, conta.
A cada sorriso ou olhar de surpresa que ela observa nos visitantes, seu propósito se renova. “Eu tento sempre que possível deixar o espaço atraente para os visitantes, e desta forma torná-lo um ambiente de aprendizagem democrático e inclusivo para todos. Somos todos iguais só que cada um, de um jeito diferente. É muito gratificante”, conclui.
Reportagem: Camila Neumam
Fotos: José Batista e Renato Rodrigues/Comunicação Butantan