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Curiosidade na veia: inspirada pelo pai e por kit de experimentos da infância, pesquisadora virou referência em diagnósticos no Butantan

Após muitos desvios de rota, a catarinense Roxane Piazza consolidou sua carreira em São Paulo na dedicação ao estudo de doenças infecciosas emergentes


Publicado em: 01/04/2024

Roxane Maria Fontes Piazza, 64, cresceu em Florianópolis (SC) em uma família ligada à ciência, na companhia de três irmãs e um irmão. Desde pequena, se inspirava na independência da mãe e se encantava pelo trabalho do pai, professor de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que estudava os misteriosos sambaquis do litoral – grandes montes de areia, terra e conchas construídos pelos povos originários há milhares de anos, mas sobre os quais até hoje não se sabe muita coisa. Nas horas vagas, em casa, ela se divertia fazendo os experimentos da coleção infantojuvenil “Os Cientistas”, idealizada pelo professor Isaías Raw, ex-diretor do Instituto Butantan.

A jovem curiosa de então não imaginava que, tempos depois, se tornaria pesquisadora naquela mesma instituição e referência em diagnóstico de doenças infecciosas. Roxane se destacou ao passar no concurso de pesquisador científico nível I antes mesmo de finalizar o mestrado, em 1986, dando início à sua bem-sucedida trajetória no Butantan no ano seguinte. Hoje, é pesquisadora nível VI do Laboratório de Bacteriologia, que dirigiu entre 2005 e 2011 – e não se imagina fazendo outra coisa.

“Quando criança, passava tardes em casa com minha irmã mais nova fazendo experimentos. Eram livros e caixinhas de isopor que vinham com microscópio e placas. Eu era fascinada!”


Inicialmente, Roxane sonhava em ser pediatra, já que vivia indo ao médico por conta de alergias. No final do Ensino Médio, decidiu se inscrever em Medicina e colocar Farmácia e Bioquímica como alternativa. Acabou sendo aprovada na segunda opção e ingressou na UFSC, seguindo os passos do pai, que dizia com firmeza aos filhos: “ou vocês estudam na Federal, ou na Federal”.

Dali em diante, a vida acadêmica de Roxane decolou. No segundo ano de graduação, foi cativada pelo trabalho com parasitologia – mais especificamente, doença de Chagas. Ela passou em um concurso de monitoria e atuou por um ano no laboratório de parasitologia da universidade. Depois, conseguiu uma bolsa de iniciação científica e desenvolveu um projeto de diagnóstico para Chagas, passo que definiria boa parte de sua carreira. Outra conquista foi um estágio de seis meses no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Após se formar, passou três anos trabalhando em laboratórios de análises clínicas em Florianópolis. Um desses laboratórios foi fundado pelo seu orientador de iniciação científica, que fez questão que ela participasse da montagem da área de diagnósticos. Quarenta anos mais tarde, esse mesmo professor a procurou e a convidou para escrever o capítulo de um livro sobre Covid-19, com foco em diagnóstico.

“O convite de participar do livro, para mim, foi um grande exemplo da confiança em meu trabalho e me mostrou a importância de deixar as portas abertas por onde você passa”

 

No epicentro do conhecimento

A catarinense começou a construir raízes em São Paulo aos 25 anos, quando ingressou no mestrado da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). Não foi simples sair de uma cidade de 200 mil habitantes na época para uma com 9 milhões, morar sozinha e lidar com o alto custo da metrópole paulista. Ela conta que, nos primeiros meses, olhava para o horizonte e podia jurar que enxergava o mar. 

Ao mesmo tempo, era fascinante estar no polo onde atuavam grandes cientistas brasileiros. “Os autores de todos os livros que estudei na faculdade estavam aqui em São Paulo. Isso sempre me estimulou muito”, diz a farmacêutica.

Após dois anos de mestrado (na época, o total eram cinco), a pesquisadora decidiu voltar à terra natal e prestou concurso público para ser professora na UFSC, em 1986, como o pai. Eram somente duas vagas e ela estava entre os três melhores candidatos, mas nem tudo saiu como planejado.


“Eu não fui aprovada por um décimo de nota porque esqueci de apresentar um documento: o histórico do mestrado. Obra do destino, coincidência? Não sei. Mas no mesmo ano, passei no concurso do Butantan”

O destino de Roxane estava, de fato, na capital paulista. Ela se tornou pesquisadora científica do Instituto Butantan em 1987 e passou a integrar a equipe do Laboratório Especial de Endemias e Zoonoses Parasitárias. No ano seguinte, recebeu uma oportunidade inesperada – uma bolsa de estudos de um ano na Universidade de Osaka, no Japão, financiada pela Japan International Cooperation Agency (JICA).

No intercâmbio, a cientista aprendeu novas tecnologias, principalmente na área de imunoquímica, muitas das quais ainda eram novidade no Brasil. Voltando da viagem, finalizou o mestrado com um projeto de caracterização bioquímica e biológica de cepas de Trypanosoma cruzi, parasita causador da doença de Chagas, utilizando as técnicas que aprendeu no exterior.

 

Da parasitologia à microbiologia 

Entre 1994 e 1998, Roxane se dedicou ao doutorado em Biologia da Relação Patógeno-Hospedeiro no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, onde continuou aprofundando seus conhecimentos em Trypanosoma cruzi. Fez um doutorado sanduíche na Alemanha para aprender técnicas de imunoquímica, entender como o parasita se ligava à célula humana e encontrar formas de impedir essa ligação. “Mas os esforços para chegar a uma vacina não surtiram resultados; até hoje, é muito complexo obter candidato vacinal contra o parasita”, aponta.

Ao retornar da Europa, a pesquisadora foi recebida com um convite do professor Luiz Rachid Trabulsi, que acabara de ser transferido do ICB para o Butantan, para integrar o novo Núcleo de Bacteriologia. Depois de tantos anos se dedicando ao Trypanosoma cruzi, Roxane aceitou o desafio de mudar sua linha de pesquisa e mergulhou de cabeça na microbiologia.

Passou a se dedicar à produção de anticorpos monoclonais para diagnóstico de infecções pelas bactérias Escherichia coli, causadoras de diarreia e um dos objetos de estudo de Trabulsi. Segundo Roxane, a maioria dos surtos de doenças diarreicas são provocados por diferentes patotipos dessa bactéria, que colonizam o intestino e podem resultar em uma série de complicações graves, como déficit nutricional e cognitivo em crianças, principalmente as subnutridas.

“Comecei a estudar a patogenicidade dessas bactérias, ou seja, entender como elas provocam a doença, e acabei virando uma microbiologista”

Desde o início da nova empreitada, Roxane já formou 20 mestres e nove doutores na área de bacteriologia, e consolidou um relevante grupo de pesquisa de diagnósticos para E. coli no Butantan. Foi coordenadora do Programa de Iniciação Científica (2012-2015) e do Programa de Pós-graduação em Toxinologia (2017-2021) do Instituto. Em 2022, tornou-se primeira secretária da Sociedade Brasileira de Microbiologia.


 

Epidemias de Zika, dengue e SARS-CoV-2

Preocupada com doenças infecciosas emergentes e reemergentes, a pesquisadora não parou por aí. Em 2015, durante a epidemia de Zika no Brasil, direcionou os esforços do grupo para desenvolver um diagnóstico rápido para a doença, em parceria com organizações como Instituto Adolfo Lutz, USP e Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Alguns anos depois, na pandemia de Covid-19, Roxane desenvolveu anticorpos monoclonais para diagnóstico do SARS-CoV-2. O teste rápido e de baixo custo foi feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e se mostrou capaz de detectar variantes da ômicron.

Sua equipe também já desenvolveu anticorpos para diagnóstico da dengue, outra arbovirose importante que provocou mais de 1 milhão de casos e 200 mortes só no início de 2024, de acordo com o Ministério da Saúde.

Hoje, a pesquisadora trabalha com colaboradores da Escola Paulista de Medicina em um projeto para desenvolver testes capazes de detectar bactérias multirresistentes, que estão entre as 10 maiores ameaças à saúde pública segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).


Resiliência e equilíbrio

Casada há 33 anos, Roxane tem um filho de 27, engenheiro, e sempre contou muito com o marido para equilibrar a maternidade e a vida de pesquisadora. Fora dos laboratórios, adora se movimentar: pratica pilates e hidroginástica de duas a três vezes por semana. Mas também considera igualmente importantes os momentos de não fazer nada e ouvir música em casa no domingo à tarde – seu “ócio criativo”.

Para a farmacêutica, ser cientista é um grande exercício para aprender a lidar com a frustração, tanto no trabalho como na vida pessoal, já que se recebe muito mais “não” do que “sim”. Nessa jornada, o respeito mútuo, o trabalho em equipe e a persistência são essenciais. Além disso, é importante deixar as portas abertas por onde passar e lembrar que não se faz nada sozinho.

“O professor Trabulsi foi um dos meus principais mentores – ele trouxe uma virada na minha vida que eu não imaginava: a mudança da parasitologia para a bacteriologia. Ele me preparou para essa nova caminhada”


Roxane teve uma trajetória dinâmica: se inscreveu em Medicina, entrou em Farmácia; prestou concurso para a UFSC, entrou no Butantan; fez doutorado em Trypanosoma cruzi e passou a trabalhar com E. coli e arboviroses. Ao refletir sobre sua história, ela se permite deixar as evidências científicas de lado. “Parece que não combina com cientista falar em destino, mas acho que existe uma força maior”, afirma. “Minhas escolhas me trouxeram até aqui, mas por oportunidades que foram surgindo e por pessoas especiais que cruzaram meu caminho.”

Em sua sala, um quadro de fotos preenche o ambiente com lembranças de colegas, alunos, congressos e viagens. Em um dos registros, Roxane está ao lado de sua primeira “turma” do Butantan: Osvaldo Sant’Anna, Carlos Augusto Pereira, Ana Moro e Luciana Leite.

Aos 64 anos, a pesquisadora publicou cerca de 100 artigos e acumula 18 prêmios, entre eles o Prêmio Bunka de Pesquisa Científica da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e os prêmios Instituto Butantan, Jovem Cientista e Inovação, organizados pelo Butantan. Ela segue trabalhando com doenças infecciosas e seu grupo é procurado por cientistas de todo o Brasil que buscam desenvolver anticorpos para novos testes. Como orientadora, tem como missão inspirar jovens cientistas e fazer os olhos dos alunos brilharem diante de seus projetos de estudo.

“A vida acadêmica não para. A ciência não para. Estamos sempre tendo ideias novas e é isso que me move. Me perguntam se eu quero me aposentar e eu digo: não, não quero!”

 

 

Reportagem: Aline Tavares

Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan