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Crianças indígenas sofrem com amputações e deficiências físicas por demora no acesso ao soro antiveneno na Amazônia

Pesquisa indica que aplicação do medicamento nas unidades de saúde indígena evitaria atrasos no tratamento, principal causa de complicações


Publicado em: 28/11/2023

Crianças indígenas picadas por serpentes venenosas na Amazônia brasileira continuam sofrendo com amputações e sequelas motoras irreversíveis causadas pelo atraso no tratamento com soro antiofídico. O acesso ao antiveneno na região, sobretudo nas comunidades indígenas e ribeirinhas, é dificultado pela distância dos hospitais de referência onde o soro é/está disponível. A demora no resgate, que pode durar dias, muitas vezes impossibilita familiares de seguirem viagem, seja pela dificuldade de conseguir diferentes meios de transporte, seja porque é inviável deixar outros filhos e familiares para trás. E, por viverem na floresta, brincando na mata ou ajudando na agricultura de subsistência, são justamente as crianças as principais vítimas do ofidismo.

Essa é a constatação do estudo “Children Growing Up with Severe Disabilities as a Result of Snakebite Envenomations in Indigenous Villages of the Brazilian Amazon: Three Cases and Narratives” (Crianças que crescem com deficiências graves como resultado de envenenamentos ofídicos em aldeias Indígenas da Amazônia Brasileira: Três casos e narrativas), do professor de Saúde Indígena da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) Altair Seabra, publicado na revista Toxins

“O acesso ao tratamento antiveneno é pior em populações indígenas em comparação com outras populações. Os casos estão associados ao atraso no tratamento antiveneno devido a itinerários terapêuticos fragmentados, marcados por diversas mudanças nos meios de transporte ao longo do percurso”, detalha o autor do estudo. 

O autor do estudo e professor de Saúde Indígena da Universidade Estadual do Amazonas, Altair Seabra

A pesquisa faz parte de um projeto que identificou a necessidade de descentralizar o estoque dos antivenenos na Amazônia brasileira – atualmente, esses medicamentos são aplicados em hospitais de Manaus e de outras cidades do estado do Amazonas. O projeto utilizou 800 ampolas de soro contra veneno de jararaca e de surucucu-pico-de-jaca (antibotrópico e antilaquético) doados pelo Instituto Butantan, que foram usados nas unidades de saúde da atenção primária (Pólos-Base), localizadas dentro do Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs) do Alto Rio Negro e Alto Rio Solimões. 

A ideia da iniciativa era permitir a administração do soro nas unidades básicas mais próximas das comunidades indígenas e ribeirinhas, evitando a necessidade de percorrer longos trajetos até os hospitais. A administração rápida do antiveneno é capaz de evitar a piora do paciente e o aparecimento de outras lesões. 

“A dificuldade de acesso ao soro aumenta o risco de vida dos acidentados e alguns fatores de risco podem tornar o envenenamento grave ou letal. O ideal é receber em poucas horas após o acidente”, explica a médica infectologista e diretora de produção de soros do Butantan, Fan Hui Wen, que coordenou o envio dos frascos ao Amazonas.

Projetos dessa magnitude na Amazônia somente são viáveis quando se tem um esforço interinstitucional, dada a complexidade regional, destaca o pesquisador. 

“Além do Instituto Butantan, o projeto contou também com a cooperação de profissionais e pesquisadores do Ministério da Saúde, da Duke University, nos Estados Unidos, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, entre outros apoiadores locais, fundamentais para a operacionalização da pesquisa”, informa.

O diretor de ensino e pesquisa da FMT/UEA, Wuelton Monteiro, detalha os dados da pesquisa em palestra no Butantan

 

Causas das lesões

O veneno de serpentes peçonhentas causa sintomas como dor, inchaço, aumento dos nódulos linfáticos, manchas roxas por extravasamento de sangue, bolhas e necrose. Os casos graves podem evoluir para uma alta pressão do tecido lesionado, que causa obstrução do fluxo de sangue (síndrome compartimental), atrofia, perda da função dos membros e até mesmo amputação, explica Fan.

A incidência de picadas de cobra é cinco vezes maior na Amazônia brasileira em comparação com o resto do país. Dos 30 mil casos de acidentes ofídicos registrados por ano no Brasil, 15% ocorrem em crianças menores de 14 anos, segundo o Ministério da Saúde. Na Amazônia, a picada da jararaca-do-norte (Bothrops atrox) é a principal causa dos acidentes ofídicos. O veneno dela leva a danos nos tecidos causados pela coagulação intravascular e ruptura dos vasos capilares sanguíneos.

Uma pesquisa brasileira já demonstrou que a população indígena apresenta prevalência significativamente maior de deficiências motoras em relação aos demais grupos. O estudo da UEA lembra que, de forma similar, outras pesquisas mostraram uma taxa muito maior de envenenamentos por picada de cobra em populações indígenas da Amazônia brasileira. Soma-se a isso que o número de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e de pediatras é proporcionalmente menor nesta região, o que pode comprometer o tratamento.

“A brincadeira, a colheita e a ida à escola representam atividades de risco para as crianças indígenas e ribeirinhas. Estes fatos estão relacionados com a maior mortalidade de crianças pequenas em áreas rurais da Amazônia do que em outras regiões do país e a maior incidência de retardo no diagnóstico e no tratamento”, afirma o pesquisador-chefe do projeto de descentralização de soros Wuelton Monteiro, diretor de ensino e pesquisa da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD).

Da esq. para dir.: Adolescente da etnia Kubeo teve a perna esquerda amputada ainda criança e precisa de nova prótese; menino da etnia Apurinã teve três dedos do pé direito amputados

 

Crianças amputadas

Uma das vítimas do ofidismo, que sofreu uma amputação pela demora no atendimento, foi um menino de 10 anos da etnia Apurinã. Morador da aldeia Vila Nova, a oito horas de barco da cidade de Tapauá (AM), ele foi picado por uma jararaca (Bothrops atrox) quando colhia abacaxis de uma plantação afastada da aldeia. “Era uma cobra preta muito grande, com seus filhotinhos”, relatou o menino à mãe, que traduziu aos pesquisadores a fala para o português.

Mordido várias vezes nas duas pernas, o menino foi enviado ao Polo Base, na zona urbana, quase 24 horas depois, com dores intensas e muito inchaço pelo corpo. Sem antiveneno na unidade, ele foi transferido de ambulância para o hospital de Tapauá, onde recebeu o soro antibotrópico 30 horas após a picada

Com um quadro de extensa necrose, ele foi transferido de avião para um hospital de Manaus onde foi submetido a uma cirurgia de amputação de três dos dedos do pé direito. A criança também sofreu uma infecção bacteriana secundária e, com a síndrome compartimental, passou por mais cirurgias de correção e remoção de tecidos necrosados.

A gravidade das lesões rendeu seis meses de tratamento com novos procedimentos cirúrgicos visando melhor cicatrização, bem como fisioterapia, na tentativa de restaurar parte da mobilidade. 

A pesquisa também cita o estudo de caso envolvendo o acidente com um menino de 9 anos da etnia Tikuna, morador da comunidade Novo Cruzador, em Tabatinga – há mais de 1.000 quilômetros de Manaus. Ele foi picado aos 7 anos por uma jararaca quando estava próximo a um igarapé.

A mordida ocorreu por volta das 9h e os familiares procuraram atendimento imediato na unidade de saúde indígena mais próxima da aldeia. Dessa unidade, o menino foi transferido para o Centro de Saúde Indígena de Belém do Solimões. Como em ambas as unidades não havia o antiveneno, o menino foi transferido para o hospital de Tabatinga, onde foi internado e recebeu o soro antibotrópico 10 horas após o acidente

Dada a gravidade do caso, devido à evolução do edema e da síndrome compartimental, o paciente foi levado para Manaus de avião, e teve parte da perna esquerda amputada. 

 

Menino da etnia Tikuna teve a perna esquerda amputada e ainda espera por prótese; ele precisa ser carregado por familiares para chegar à escola

 

Necessidade de próteses

Após a cirurgia, o menino ainda ficou por oito meses na capital até poder voltar para a aldeia. Atualmente, ele frequenta a escola Tikuna, onde chega carregado pelos familiares. “Ele gostaria de ter uma prótese para poder andar novamente”, disse o pai aos pesquisadores.  

Outro caso é o de um adolescente de 15 anos da etnia Kubeo, residente na região periurbana do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), que sobreviveu a uma picada de jararaca aos 5 anos, embora tenha tido uma das pernas amputadas. 

No dia do acidente, ele voltava da roça no final da tarde com a avó, um irmão mais velho e outros familiares quando pisou na serpente. Chorando e gritando de dor, ele foi socorrido por um primo que o carregou por quilômetros até chegarem a uma estrada. Os pais foram avisados e resolveram tentar socorro com algum motorista que passasse. Sem sucesso, voltaram para casa, onde o menino recebeu emplastros com ervas. 

Seu pai o levou para a estrada na manhã seguinte onde um carro de polícia passou e fez o transporte da criança até o hospital mais próximo. Naquele momento, o menino não conseguia mais mexer a perna esquerda, que estava totalmente inchada. 

A criança recebeu o soro antibotrópico 15 horas após o envenenamento. Como os exames detectaram insuficiência renal, ele foi transportado para um hospital de Manaus três dias depois. O menino foi levado para a UTI pediátrica e precisou se submeter a uma cirurgia de fasciotomia para tratamento da síndrome compartimental. Ele permaneceu no hospital por três meses para cirurgias reconstrutivas e enxertos de pele. “Fizeram de tudo para salvar a perna, mas o médico disse que a parte afetada pelo veneno foi necrosada e atingiu até o osso”, disse o pai aos pesquisadores.

Após a alta do hospital, a criança e o pai permaneceram em Manaus por mais cinco meses para tratamentos de reabilitação. Como o menino sofreu grande perda tecidual de parte da perna esquerda, à medida que ele foi crescendo surgiram déficits motores significativos e escoliose por desvio de postura. 

Em 2021, o jovem foi submetido à cirurgia de amputação do membro e colocação da prótese mecânica em Campinas (SP). “A perna dele está crescendo e a prótese está ficando apertada e formando calos onde é colocada. Na unidade de saúde indígena não há profissionais capacitados para esse tipo de acompanhamento do paciente”, explica o pai. 

Futuro incerto

Altair Seabra, da UEA, detalha que o acesso aos serviços de reabilitação, geralmente localizados na capital, impedem a grande maioria dos sobreviventes de ter uma recuperação adequada – seja pela dificuldade de chegar, seja pela resistência em sair dos territórios indígenas. 

“É muito agressivo para o indígena ter que se deslocar da aldeia para a cidade, sair de sua terra. Para ele, estar com os familiares é muito importante para o tratamento porque, dependendo do agravo, a família também entra em determinada conduta para recuperação do paciente”, explica Altair.

A pesquisa aponta ainda que a perda de autonomia devido à deficiência numa fase tão precoce da vida pode privar as crianças de experiências sensoriais e sociais que comprometem seu futuro na comunidade. 

“Um dos objetivos do estudo, além de mostrar como a dificuldade do acesso impacta cruelmente a vida das crianças indígenas, é fazer outros estudos prospectivos que estimem a carga das incapacidades causadas pelos acidentes ofídicos, a fim de formular políticas públicas para o tratamento e reabilitação de pacientes através de intervenções culturalmente adaptadas”, conclui Altair.

 

Reportagem: Camila Neumam

Fotos: José Felipe Batista e acervo Altair Seabra

Fotomontagens: Manu Ferreira