Portal do Butantan

Pesquisadora há quase 40 anos, Solange Serrano é mãe de gêmeas e apaixonada por venenos de serpentes e suas fantásticas toxinas

Apesar do medo de serpentes, a pesquisadora científica do Butantan dedicou sua vida a entender como seus venenos funcionam


Publicado em: 26/02/2024

Mudanças na carreira podem acontecer em qualquer etapa da vida. Para Solange Maria de Toledo Serrano, pesquisadora científica do Laboratório de Toxinologia Aplicada (LETA) do Butantan, elas vieram cedo. Graduada em Farmácia-Bioquímica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), ela percebeu logo nos primeiros meses após a faculdade que o laboratório clínico não era o seu lugar — a repetição da rotina não lhe agradava em nada. Saiu de Bauru, sua cidade natal, em busca de uma nova chance e bateu às portas do Instituto Butantan com a coragem de um sonho. Hoje, após se redescobrir no universo ofídico, ela lidera um grupo de pesquisa que é especialista na análise de toxinas de venenos de serpentes e seus efeitos.

Quem conhece a cientista que, aos 64 anos e com mais de 130 artigos publicados, passou décadas orientando profissionais e está prestes a completar 40 anos de casa, mal pode imaginar que estudar venenos, sobretudo de serpentes, não era seu objetivo inicial. Quando visitou pela primeira vez o Instituto Butantan, aos 9 anos de idade, Solange ficou aterrorizada pelas serpentes que viu no Serpentário e no Museu Biológico do Parque da Ciência. “Lembro que cheguei a falar que nunca mais entraria naquele lugar horroroso”, brinca a pesquisadora. 

Apesar do medo de serpentes, que não diminuiu ao longo dos anos, a farmacêutica se inscreveu no processo seletivo para estágios, indicação de pesquisadores do Butantan que ministraram um curso de virologia na UNESP quando ela ainda estava na graduação. Solange, que na época conhecia pouco de São Paulo e ainda trabalhava em Bauru, só pôde comparecer em um dos testes nos quais se inscreveu. Mas foi uma escolha acertada: ela passou no processo seletivo e se tornou oficialmente estagiária do Laboratório de Bioquímica.

 

O trabalho foi o pontapé inicial de sua carreira científica. No laboratório, ela aprendeu o básico da pesquisa — como realizar experimentos, interpretar os resultados, discuti-los, aprimorá-los e como pensar novos meios para confirmar hipóteses. Foram 3 anos de aprendizado e trocas com os pesquisadores experientes do Butantan, com apoio da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), órgão de fomento do estado de São Paulo, e do Fundo Especial de Despesa do Instituto Butantan (Fedib), destinado a estagiários.

Foi um período de encontro. Por não ter feito iniciação científica durante a graduação, Solange não tinha experiência com pesquisas práticas, e foi o treinamento no Laboratório de Bioquímica que fez a paixão pela ciência aflorar. 

“A pesquisa tem perguntas, tem curiosidade envolvida, tem metodologia. Tem que ter disciplina para trabalhar e ter bons resultados e, sobretudo, para ser pesquisador, você tem que estudar continuamente. Estudar as novas metodologias, estudar os resultados de outros pesquisadores e comparar como isso se relaciona com os seus achados. Essa é a essência da pesquisa científica e era isso que eu gostava. Tive sorte de ter feito essa mudança rapidamente.” 

A pesquisadora lembra com carinho a importante experiência de ter iniciado a vida científica no Laboratório de Bioquímica, com as doutoras Fajga Mandelbaum, Marina Assakura e Antonia Reichl. “As linhas de pesquisa em andamento no laboratório naquele momento eram sólidas e importantes, e até hoje inspiram meus projetos”, ressalta.

Em fevereiro de 1987, Solange passou no concurso para pesquisadora nível 1, e entrou para os quadros oficiais de cientistas do Instituto Butantan. O seu trabalho de lá para cá não mudou: caracterizar venenos de serpentes, seus efeitos e a patogênese que ocorre em envenenamentos. “A única coisa que não é mais a mesma são as ferramentas. As que uso hoje são completamente diferentes daquelas de quando comecei. Eu e outros colegas tivemos que ir acompanhando a evolução tecnológica e ir assimilando novas metodologias aos nossos estudos”, explica.

Solange é mestre e doutora em Biologia Molecular pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e tem pós-doutorado com passagens na Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, Instituto Pasteur, na França, e Universidade Luís Maximiliano de Munique, na Alemanha — títulos que conquistou enquanto era pesquisadora do Instituto Butantan. 

 

Evolução tecnológica e referência global

No início dos anos 2000, um marco importante alterou para sempre os estudos de caracterização de venenos de serpentes e seus efeitos — eles foram assimilados às novas metodologias de análise proteômica baseada em espectrometria de massas. As chamadas técnicas high throughput (ou alto rendimento) passaram a aumentar o desempenho de estudos de proteomas. Antes disso, as análises eram feitas de modo individual e reducionista, uma proteína por vez. Depois do surgimento das metodologias ômicas, o leque de possibilidades para entender um fenômeno biológico como um todo e a quantidade de resultados possíveis aumentaram radicalmente. Isso impactou positivamente as pesquisas de Solange, que envolvem proteínas e peptídeos de venenos.

“O fato de que eu tive oportunidade de aprender essas metodologias, colaborar com colegas do Instituto e de fora e utilizar isso nos meus estudos abriu muito as possibilidades do conhecimento para o que são os venenos das serpentes. Hoje sabemos muito da composição de toxinas e usamos essa tecnologia para entender os seus efeitos de maneira ampla”, relata a pesquisadora. Os estudos do grupo de Solange começaram com o isolamento de toxinas do veneno de serpentes Bothrops, além de sua caracterização estrutural e biológica, e hoje possibilitam análises minuciosas em várias toxinas de uma só vez.

O trabalho coordenado por Solange é referência no Brasil — o laboratório de proteômica do LETA realiza análises para diversos laboratórios, sejam do Butantan, sejam de outros estados. Há cerca de 15 anos, o grupo desenvolve um trabalho de reputação global sobre a caracterização glicoproteômica de venenos de serpentes em larga escala. Essas glicoproteínas são proteínas que contêm cadeias de glicanos (carboidratos) que conferem estabilidade e que podem indicar a sua destinação no organismo. 

A pesquisadora também faz parte do corpo editorial de revistas científicas internacionais de renome, como Biochemical Journal e Toxin Reviews. Sua principal função é realizar o “julgamento por pares”, em que os trabalhos submetidos por pesquisadores são avaliados por outros cientistas, os quais apontam erros e acertos, de forma sigilosa. 

“Tudo que um pesquisador faz é avaliado por alguém. Seja um relatório, um projeto submetido, um trabalho de mestrado, doutorado, um artigo, etc”, resume. Essa avaliação constante, porém, não incomoda Solange: a magia da pesquisa, que foi o que a fez se apaixonar pela ciência lá atrás, ainda a influencia todos os dias. “Às vezes você deixa um experimento em andamento, uma reação acontecendo durante a noite. No outro dia você quer chegar e ver o resultado. Será que deu certo o meu experimento? Aí você fica feliz ou percebe que deu tudo errado, o incubador falhou, ou você pipetou errado e vai ter que fazer tudo de novo. É a vida da gente, cheia de surpresas.”

 

 

Dificuldades no caminho e exemplo para as futuras cientistas

Em uma carreira de conquistas, também há dificuldades. Em 1995, quando as filhas gêmeas de Solange nasceram, as mulheres só tinham direito a 3 meses de licença-maternidade. Mesmo com um mês de férias para ampliar o período de cuidados com as recém-nascidas, o tempo estava muito aquém do que uma mãe de gêmeas precisava para poder voltar ao trabalho. A pesquisadora matriculou as meninas na creche do Butantan, que então recebia os filhos e filhas dos funcionários. As gêmeas ficavam aos cuidados da creche das 8h da manhã até que Solange pudesse pegá-las, às 17h, no fim do expediente. “Até uns 7 ou 8 anos elas davam muito trabalho, então eu ficava muito cansada, mas nunca deixei de trabalhar por conta disso”, diz.

O amor pelo trabalho mostra a resiliência inabalável da pesquisadora. Um mês depois do aniversário de 2 anos das filhas, Solange decidiu viajar para Munique, na Alemanha, e dar andamento ao pós-doutorado. Levou a família inteira — uma prática que se repetiu ao longo de toda a carreira. Também era difícil quando era preciso trabalhar em casa nas horas vagas, para ganhar tempo, com o Disney Channel na TV e as crianças brincando ao redor do sofá, mas Solange continuou firme.

“Hoje em dia eu tenho o privilégio de trabalhar fazendo exatamente aquilo que eu gosto. Sempre movida pelo mesmo desejo de responder novas perguntas e avançar o conhecimento. Sou uma pessoa feliz trabalhando, já poderia ter me aposentado há muito tempo.”

O foco no trabalho é motivo de orgulho e inspiração, sobretudo para jovens meninas que buscam carreira na ciência. Solange acredita que sua performance é o maior sinalizador de que é possível ser bem sucedida, basta ter paciência e determinação. “Não sou só eu: temos várias pesquisadoras aqui no Instituto, com carreiras sólidas e que formam pessoas e avançam o conhecimento. Nossas próprias jornadas intuitivamente servem de estímulo para as jovens que estão começando”, afirma. É por essas e outras que Solange continua apaixonada e entusiasmada pela ciência. 

 

Reportagem: Guilherme Castro

Fotos: Renato Rodrigues