Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan; Acervo Histórico/Centro de Memória do Instituto Butantan; e Karina Kasperoviczus
Há mais de um século o Butantan está na vanguarda das pesquisas científicas relacionadas à jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), espécie endêmica da Ilha da Queimada Grande, localizada a cerca de 35 quilômetros da costa no município de Itanhaém, no litoral sul paulista. Desde a chegada dos primeiros espécimes ao Instituto, e com o início das expedições científicas à ilha, no começo do século XX, muito se descobriu sobre essa serpente: da descrição de uma nova espécie até o levantamento de informações que buscam explicar seu comportamento, reprodução, ecologia e evolução.
Essa longa trajetória de estudos e descobertas científicas teve início com eventos aparentemente simples, mas que se revelaram marcos fundamentais para a compreensão da Bothrops insularis, dando início a uma jornada científica que se estende até hoje. Afinal, ainda há muito a se descobrir sobre essa serpente tão singular que nos ajuda a entender os mecanismos por trás da evolução das espécies.
Vista da Ilha da Queimada Grande durante chegada de expedição científica realizada na década de 1950 (Foto: Acervo Histórico/Centro de Memória do Instituto Butantan)
Primeiras pesquisas: 105 anos da chegada à Queimada Grande
Tudo começou em 1911, quando os primeiros exemplares da serpente chegaram ao Instituto Butantan, enviados por um dos faroleiros que habitava a Ilha da Queimada Grande. Inicialmente, a jararaca foi classificada como sendo idêntica à espécie continental (Bothrops jararaca, então denominada cientificamente Lachesis lanceolatus), apesar de apresentar características diferentes da “jararaca comum”, como coloração amarelada, cauda mais alongada com a extremidade escura e cabeça com dimensões maiores.
Porém, alguns anos depois, um novo lote de serpentes da ilha trouxe uma descoberta inesperada, que despertou a curiosidade do herpetólogo da extinta Seção de Ofiologia do Butantan Afrânio do Amaral (1894-1982). Ao examinar as fezes dos animais, o pesquisador detectou a presença de penas: um achado surpreendente que sugeria que a espécie se alimentava de aves, ao contrário das jararacas continentais, que têm uma dieta muito mais generalista, incluindo pequenos roedores, como ratos e camundongos, anfíbios, como rãs e sapos, além de lagartos e até centopeias. Intrigado com a evidência, o herpetólogo decidiu embarcar rumo à Queimada Grande a fim de observar o comportamento da serpente, que se mostrava cada vez mais peculiar, em seu habitat natural.
O herpetólogo do Butantan Alphonse Richard Hoge liderou uma série de expedições à "Ilha das Cobras" durante as décadas de 1950 e 1960 (Foto: Acervo Histórico/Centro de Memória do Instituto Butantan)
Foi assim que, em abril de 1920, Afrânio do Amaral fez a primeira de uma série de expedições que, dentre diversas descobertas científicas, resultaram na descrição de uma novíssima espécie: a jararaca-ilhoa. Em um primeiro momento, a serpente foi batizada cientificamente de Lachesis insularis e, posteriormente, Bothrops insularis. Além das diferenças morfológicas, os estudos confirmaram que a serpente da Queimada Grande é predadora de aves e possui hábitos arborícolas, passando boa parte do tempo movimentando-se entre os galhos das árvores.
Além das expedições pioneiras de Afrânio do Amaral, uma segunda fase significativa de pesquisas na ilha ocorreu durante a década de 1940, conduzida pelo então diretor do Laboratório de Herpetologia do Butantan Alphonse Richard Hoge (1912-1982). Essas viagens resultaram na coleta de exemplares incorporados à Coleção Herpetológica do Instituto que continuam sendo fundamentais para a pesquisa contemporânea, uma vez que servem como material de referência para estudos taxonômicos e para a identificação e classificação de espécies, além de serem um registro da biodiversidade brasileira.
Outro importante estudo conduzido por Hoge durante o período descreve a descoberta de uma anomalia sexual em fêmeas de Bothrops insularis. O pesquisador as classificou em dois tipos: “fêmeas verdadeiras” (sem a presença do órgão masculino) e “fêmeas intersexuadas” (com a presença do órgão sexual masculino). Segundo o herpetólogo, a população de machos da ilha estaria diminuindo, ao passo que a de fêmeas intersexuadas aumentava, levantando a hipótese de que a espécie não precisaria de machos para se reproduzir.
A partir daquela época, conduzir pesquisas sobre os mecanismos de reprodução das serpentes mostrou-se crucial para a conservação da espécie, assim como para o desenvolvimento de melhores estratégias de manejo em biotérios e a compreensão da diversidade biológica.
Colaboradora do Butantan realiza coleta durante visita à Queimada Grande (Foto: Karina Kasperoviczus)
O desenvolvimento de novas pesquisa e a ciência em constante transformação
Atualmente, as serpentes insulares (espécies endêmicas de ilhas, como é o caso da jararaca-ilhoa) são objeto de estudo de diversos pesquisadores do Butantan. Por conta desse interesse, após um período de quase três décadas sem expedições – e, consequentemente, sem a produção de novos conhecimentos científicos –, especialistas do Instituto têm visitado com frequência a Queimada Grande, continuando e aprofundando as pesquisas sobre a espécie.
Na década de 2000, foi iniciado o trabalho de implantação de microchips para monitoramento das serpentes, além do censo populacional da jararaca-ilhoa. De acordo com o pesquisador científico do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEv) Otávio Marques, que contribuiu com o estudo e é um dos recordistas em visitas à Queimada Grande, o método adotado consistiu em amostrar 26 quadrados de 10 metros de lado em diversos pontos da ilha, que tem 430 quilômetros quadrados. O estudo contabilizou a presença de 2.500 a 3.000 serpentes no total.
Além disso, foram identificadas as aves migratórias que compõem a dieta da jararaca-ilhoa: a guaracava-de-crista-branca (Elaenia chilensis), que chega à Queimada Grande em março; e o sabiá-una (Turdus flavipes), que visita a ilha entre junho e outubro. Os dados contribuíram para entender melhor a ecologia e os hábitos alimentares da serpente em seu habitat natural.
Estrutura montada para que os pesquisadores pudesem cozinhar e se alimentar, durante longas estadias na ilha (Foto: Karina Kasperoviczus)
Já as novas pesquisas sobre a biologia reprodutiva da Bothrops insularis revelaram aspectos inesperados. Um estudo de 2009 mostrou que todas as fêmeas observadas da população apresentam o chamado “hemipênis”: órgão reprodutor encontrado no macho e que se assemelha a um gancho bifurcado. A descoberta refutou a classificação anterior de “fêmeas verdadeiras”, feita na década de 1950 por Alphonse Hoge, que diferenciava as fêmeas da ilha com e sem órgãos sexuais masculinos.
Estudos recentes conduzidos pela equipe da pesquisadora científica do LEEv e referência internacional em reprodução de serpentes, Selma Almeida-Santos, também apontaram uma alta incidência de hemipênis entre fêmeas de outras espécies de jararaca endêmicas de ilha, como a Bothrops sazimai, da Ilha dos Franceses (ES), e a Bothrops germanoi, da Ilha da Moela (SP), o que poderia indicar uma possível “síndrome da ilha”, já que o mesmo padrão não se repete entre as jararacas do continente.
“Hoje também sabemos que é menos comum encontrar espécimes machos fora do período de reprodução, que acontece durante os meses de outono e inverno, uma vez que eles circulam menos em busca de fêmeas. Acreditamos que, provavelmente, as viagens do doutor Hoge à ilha coincidiram com esse período em que os machos circulam menos, o que acabou gerando o que chamamos de 'factoide científico'”, completa a pesquisadora.
Os exemplos citados por Selma ilustram como a ciência não é um conjunto estático de verdades, mas sim um processo dinâmico, no qual novas descobertas e metodologias aprimoradas continuamente refinam e, quando necessário, modificam o conhecimento previamente estabelecido.
Pesquisador realiza captura para avaliação de espécime de jararaca-ilhoa (Foto: Marília Ruberti/Comunicação Butantan)
Ilhas como laboratórios da evolução: mudanças climáticas e conservação
Atualmente, as pesquisas conduzidas na Ilha da Queimada Grande também buscam compreender os processos evolutivos que se desenrolam em um ambiente insular. “De forma resumida, essas localidades nos permitem entender como foi o passado para ‘predizer’ o futuro”, afirma o especialista de laboratório e curador da Coleção Herpetológica do Butantan, Felipe Grazziotin.
Para isso, diversos pesquisadores do Laboratório de Coleções Zoológicas têm ido a campo a fim de testar a chamada “teoria da biogeografia de ilhas”, usando como referência a diversidade genética e de venenos encontrada na população de jararacas da Queimada Grande. O objetivo é entender se a distância da costa, o tamanho e a variação de altitude da ilha afetam as “diferenças” encontradas no DNA e na peçonha de espécimes de B. insularis.
“Essa diversidade é muito importante, principalmente em uma realidade de mudanças climáticas, pois quanto mais monotemático for o veneno de uma população de serpente, mais preocupante será seu futuro, visto que ela tem pouco repertório para sobreviver”, esclarece Felipe Grazziotin. As jararacas da Queimada Grande, por exemplo, têm uma baixa diversidade de veneno, e isso pode estar relacionado ao fato da ilha ser pequena e relativamente distante da costa. Trocando em miúdos: se porventura um novo predador aparecer naquele ambiente, toda a população de B. insularis estaria sob forte ameaça.
Na ilha, extração de veneno da Bothrops insularis também faz parte das rotina dos pesquisadores
Já em ilhas maiores, como Ilhabela e a Ilha de Santa Catarina – onde também são conduzidos trabalhos de campo –, os especialistas têm observado uma diversidade maior no veneno de representantes de uma mesma espécie. “A evolução nos mostra que é justamente aquela fração mínima, que difere uma peçonha da outra, que pode conferir algum tipo de vantagem a um dado indivíduo, que vai conseguir sobreviver, gerar descendentes e, consequentemente, manter a viabilidade da espécie”, completa o curador da Coleção Herpetológica do Butantan.
Além de contribuir para a compreensão de processos evolutivos, a jararaca-ilhoa se tornou protagonista de avanços revolucionários ao ser a primeira serpente no mundo que teve o transcriptoma de sua glândula de veneno sequenciado – uma conquista científica desenvolvida no próprio Instituto Butantan, encabeçada pelo pesquisador científico do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada (LETA) Inácio Junqueira de Azevedo. Esse marco mudou o paradigma de como se estuda a variação e composição de venenos de serpentes, estabelecendo novas metodologias que hoje são aplicadas no campo da toxinologia.
As descobertas feitas na Queimada Grande e em outros ambientes insulares – o Butantan mantém pesquisas em outras ilhas brasileiras – também têm aplicações diretas na elaboração de estratégias de conservação das chamadas “ilhas ecológicas”, como o Parque Estadual Fontes do Ipiranga, na cidade de São Paulo, que abrange o Jardim Botânico, o parque do Zoológico e o da Independência, predizendo o tamanho mínimo necessário para manter populações viáveis e a conectividade com outros fragmentos verdes do município.
Mais de um século após as primeiras viagens de Afrânio do Amaral à Queimada Grande, o futuro das expedições científicas do Butantan a ambientes insulares segue promissor. Os planos incluem ampliar e aprofundar o conhecimento disponível sobre outras serpentes endêmicas a fim de garantir sua conservação, descrever novas espécies e até incluir outros grupos de animais peçonhentos nas abordagens científicas, como aranhas, lacraias e escorpiões.
Referência:
Instituto Butantan e a jararaca-ilhoa: cem anos de história, mitos e ciência
* Também contribuiu com esta matéria a bióloga e tecnologista no Laboratório de Ecologia e Evolução Karina Kasperoviczus.