Quando o assunto é reprodução de serpentes, o nome de Selma Almeida Santos, diretora técnica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV), é referência na comunidade científica brasileira e internacional. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), ela inclui entre suas pesquisas de maior reconhecimento a descrição do ciclo reprodutivo das jararacas e cascavéis, que apontou a capacidade que as fêmeas da espécie têm em estocar o esperma do macho por longos períodos.
Há mais de três décadas no Instituto Butantan e com mais de 130 artigos publicados, é difícil imaginar que Selma quase enveredou por caminhos que a levariam para longe das suas amadas serpentes e até da própria produção científica. Ainda na graduação, fez iniciação científica no Museu de Zoologia da USP com foco em formigas. Já no Butantan, chegou para atuar como estagiária e lidar com aranhas. Depois, se envolveu na investigação de parasitas em serpentes e até flertou com a filosofia e a pedagogia, chegando a cogitar uma mudança profissional.
Selma Santos manejando uma jararaca-ilhoa. A espécie tem sido um dos principais focos de estudo da especialista
O contato mais próximo com as cobras, decisivo para sua carreira, começou quando Selma assumiu o cargo de técnica em um dos biotérios do Laboratório de Herpetologia do Butantan, após passar em um concurso em 1990. “Eu tinha um emprego e estava muito feliz com a minha posição, nem me passava pela cabeça trilhar o caminho acadêmico”, conta. Mas a veia de pesquisadora sempre esteve latente. “Lembro de passar muito tempo observando os bichos e sempre tirar dúvidas com quem estava ali há mais tempo.”
Tanto que, quatro anos depois, veio a publicação do artigo que a especialista considera ser seu primeiro trabalho científico, descrevendo uma técnica de inseminação artificial desenvolvida por ela em cascavéis. Também é dessa época uma memória afetiva especial: ter em mãos as chamadas “separatas”, espécie de cópia física que os pesquisadores recebiam ao ter um artigo publicado, antes do advento da internet. “Eu ficava extasiada quando os recebia.”
A publicação do artigo científico sobre o ciclo reprodutivo das jararacas e cascavéis catapultou Selma Santos ao reconhecimento internacional
Na rotina de trabalhos do biotério, a cópula das serpentes sempre foi um dos momentos que mais despertava a curiosidade de Selma. Com base em suas observações, experimentos e consequentes descobertas, publicou, em 2002, o artigo que descreveu o ciclo reprodutor das jararacas. “Observamos que, por mais que a cópula aconteça no outono, a fertilização em si só ocorre na primavera, com as temperaturas mais elevadas, demonstrando a capacidade que essas fêmeas têm de estocar esperma”, explica.
Elaborada em parceria com a bióloga Maria da Graça Salomão, então pesquisadora do Laboratório de Herpetologia e hoje coordenadora de redação médica do Butantan, a publicação Reproduction in Neotropical pitvipers, with emphasis on species of the genus Bothrops foi apresentada em um congresso na Suécia. “A abordagem que propusemos nesse artigo foi inédita. Devo grande parte do meu reconhecimento internacional a esse trabalho.”
Orgulhosa, mostrando sua tese de qualificação no doutorado da USP
Emoções acadêmicas
Apesar de, à época, não possuir o título de mestre ou doutora, Selma demonstrou que, de fato, já era uma cientista capaz de conduzir seus próprios experimentos. Por isso, quando retornou da Europa, decidiu iniciar uma pós-graduação e passou a integrar o programa de mestrado em Anatomia da Faculdade de Medicina Veterinária da USP.
“Quando estava quase para defender a dissertação, minha coordenadora avisou sobre uma regra que permitia aos alunos com iniciação científica e trabalho publicado – o meu caso – ‘pular’ o mestrado e ir diretamente para o doutorado.” Navegando em um complexo processo burocrático e correndo contra o tempo, Selma foi aprovada. “Fui uma das primeiras alunas da Veterinária da USP a conseguir. Foi muito esforço”, lembra, emocionada. Estudante de escola pública e nerd declarada, Selma credita aos pais a vontade de sempre querer aprender. “Foram eles que me deram a lição mais valiosa: a de sempre ler muito.”
Pouco depois de ingressar no doutorado, surgiu outra oportunidade que ela não podia deixar escapar: em 2003 o Butantan abriu um novo concurso público para a carreira de pesquisador científico. “Apesar de não ser uma exigência, geralmente eram escolhidos candidatos que já tinham algum título. De certa forma, eu ‘só’ tinha a graduação”, recorda. Naquele ano, foi aberta uma única vaga para o setor de Herpetologia. “E quem é que não queria trabalhar com serpentes no Butantan? Eu pensei que não ia passar! Era muita gente boa concorrendo.”
Quando saiu o resultado, estava lá: Selma Maria de Almeida Santos, aprovada para o posto de pesquisador científico no Laboratório de Herpetologia e segunda colocada na classificação geral do Butantan. “De vez em quando, penso nesse processo seletivo e tenho dificuldades em acreditar que consegui”, diverte-se.
Jornada dupla
Antes de alcançar a tão sonhada vaga de pesquisadora, Selma já exercia outra nobre função. Por mais de 15 anos, foi professora de Biologia do Ensino Médio em escolas públicas e particulares. Em 1998, chegou a ocupar o cargo de coordenadora pedagógica. Foi nesse período que ela se aproximou da pedagogia, chegando a frequentar algumas disciplinas do curso na USP e a cogitar um mestrado na área. Para o alívio da comunidade científica, a mudança não se concretizou.
“Sempre amei ensinar ciência, mas depois de longas jornadas de trabalho, precisei me afastar para me dedicar aos estudos.” Assim como a pesquisa, Selma tem a vocação para lecionar em seu sangue. Tanto que hoje orienta 16 alunos de iniciação científica, especialização e pós-graduação em importantes instituições, como na Escola Superior do Instituto Butantan (ESIB), na pós-graduação em Toxinologia do Butantan, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), na USP e no Museu Nacional do Rio de Janeiro.
“A orientação é uma experiência única e gratificante, pois temos a oportunidade de acompanhar a real evolução do aluno. Muitos começam com uma dissertação de iniciação científica e chegam a uma tese de doutorado ou pós-doutorado. É uma troca valiosa.”
A biológa em meio às instalações do novo LEEV, espaço que vai promover a difusão científica entre os visitantes do Parque da Ciência Butantan
Pesquisa de vanguarda
Desde 2019, Selma Santos está à frente do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV) que, em breve, ganhará uma nova sede. O espaço, considerado um dos mais modernos do Instituto, tem mais de mil metros quadrados e foi construído sob estruturas metálicas, integrando-se às copas das árvores. Além disso, foram instaladas grandes janelas nos blocos que compõem o complexo para a interação com o público.
“Essa aproximação faz parte da nossa estratégia. Queremos chamar a atenção das pessoas que passam diariamente no Butantan para a importância da conservação das serpentes brasileiras, ao passo que também desenvolvemos pesquisas sobre o assunto. Nossos esforços, atualmente, são para que esses animais não deixem de existir”, afirma.
As chamadas serpentes insulares – espécies endêmicas de cinco ilhas brasileiras – são os principais objetos de estudo do LEEV, a começar pela jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), na Ilha da Queimada Grande, em São Paulo. Além de aprofundar os estudos referentes à biologia, reprodução e evolução da espécie, Selma pretende criar um banco de sêmen para desenvolver práticas de inseminação artificial, garantindo a conservação da serpente.
Em seu escritório, junto às imagens e miniaturas que representam suas referências e paixões científicas
As particularidades evolutivas das espécies de ilhas, inclusive, foram o tema que mais marcou a pesquisadora no Ensino Médio e a fez mergulhar de cabeça na ciência. “Minha professora apresentou as hipóteses de Charles Darwin para a formação das ilhas de coral e nos ensinou que o papel do cientista é formular hipóteses que podem ser testadas a partir da experimentação.” Não à toa, ela mantém um quadro com o retrato do naturalista britânico próximo à sua mesa de trabalho, ao lado de outros importantes cientistas, como a física e química Marie Curie e o próprio fundador do Butantan, Vital Brazil.
Para além das referências científicas, é a natureza em seu estado puro aquilo que mais a inspira. “Adoro ler, estudar, pesquisar e orientar meus alunos. Mas quando preciso recarregar as energias, só mesmo uma praia cercada de verde, areia branca e mar azul. Quando o Butantan permite, é para lá que eu corro”, finaliza a pesquisadora.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan