*Este texto foi atualizado em 30/6/2023
O vírus da dengue, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, é um desafio mundial de saúde pública há décadas. Em 2010, quando o Brasil enfrentou um grave surto da doença, com quase 1 milhão de casos e 572 mortes, o Instituto Butantan reuniu esforços para iniciar o desenvolvimento da primeira vacina contra a dengue do mundo, a partir das cepas atenuadas licenciadas pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH). Anos mais tarde, o projeto marcou o primeiro licenciamento de uma vacina brasileira a ser feito por uma multinacional, a farmacêutica MSD. Com resultados promissores na reta final do estudo clínico e uma eficácia de quase 80%, o produto deverá ser disponibilizado, futuramente, no Sistema Único de Saúde (SUS).
O trabalho é sinônimo de inovação para o Butantan e para o Brasil em diversos sentidos, segundo a diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação do instituto, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi. “O projeto da vacina da dengue é um pivô: passou por desenvolvimento próprio desde a formulação do produto aos ensaios clínicos de fase 2 e 3, por acordo de codesenvolvimento para uma empresa internacional, além de ter propiciado a criação de uma rede nacional de centros de pesquisa clínica liderada pelo Butantan.”
Tudo isso foi possível graças a uma tecnologia que já estava bem consolidada no instituto desde o início dos anos 2000: a plataforma de células Vero, usada anteriormente no desenvolvimento de imunizantes contra raiva e rotavírus no Laboratório Piloto de Vacinas Virais. Trata-se de uma linhagem de células epiteliais renais do macaco-verde africano, desenvolvida em 1962. “O instituto já tinha infraestrutura, sistema de controle de qualidade e pessoas qualificadas para trabalhar com essa tecnologia”, conta Ana Marisa.
Mesmo com toda a expertise, o desenvolvimento da vacina da dengue foi extremamente complexo. Como existem quatro sorotipos do vírus (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4) e é possível se infectar mais de uma vez por cepas diferentes, com risco maior de ter uma doença grave na segunda infecção, o imunizante precisava proteger contra todos os vírus. Mas entre o recebimento das cepas até a formulação da vacina que chegou ao braço dos voluntários, foram quatro anos de um trabalho extenso, com 270 experimentos e 50 tentativas de formulação. Isso porque o produto final precisava conter exatamente a mesma quantidade de cada sorotipo.
Para isso, primeiro os pesquisadores estudaram separadamente cada cepa, desde a inoculação dos vírus nas células à coleta, concentração, purificação, formulação e liofilização – processos que afetam os títulos virais (quantidade de vírus nas amostras). Ao longo dessas etapas, cada monovalente perdia uma quantidade diferente de carga viral. Foi necessário determinar, desde o início, a quantidade ideal para usar de cada vírus, de modo que a formulação final tivesse uma concentração equilibrada de todas as cepas.
“O processo de liofilização, particularmente, é muito difícil, porque se perde muito vírus. Depois temos que diluir – e devemos usar um diluente que não cause tanta perda viral e que não afete a estabilidade do vírus. Por isso foi preciso estudar tantas formulações”, explica a gerente de projetos do Laboratório Piloto de Vacinas Virais, Neuza Frazatti.
Com a vacina formulada e a segurança da tecnologia já validada pelo estudo clínico de fase 1 conduzido nos Estados Unidos, o projeto seguiu para as fases 2 e 3 no Brasil, que contaram com 300 participantes adultos e 16.235 voluntários de 2 a 59 anos, respectivamente. Iniciado em 2016, o estudo de fase 3 mobilizou 16 centros de pesquisa de 14 estados brasileiros, se tornando um dos maiores ensaios clínicos já conduzidos no país – e o primeiro a ser liderado pelo Butantan. Os protocolos e a execução dos estudos foram coordenados pelos pesquisadores Alexander Precioso, Ricardo Palácios e Esper Kallás.
“É um avanço muito importante para o Butantan e para o Brasil, pois se criou uma infraestrutura que permite que o instituto assuma com facilidade outros ensaios clínicos”, aponta Ana Marisa.
Hoje, a dengue soma 400 milhões de casos no mundo por ano e, só nas Américas, 500 milhões de indivíduos vivem sob o risco de contrair a arbovirose diariamente. No Brasil, em 2022, houve um aumento de quase 200% nos casos e 400% nas mortes causadas por dengue. Os dados refletem a urgência global de se ter uma vacina capaz de controlar a doença.
Do Brasil para o mundo
A vacina da dengue desenvolvida no Butantan se destacou no cenário internacional, especialmente após um acordo inédito de licenciamento com a farmacêutica MSD. A negociação envolveu inúmeras discussões, apresentações e uma due diligence. “É um motivo de orgulho para todos nós. E isso abre portas: quando se tem a confiança de uma empresa multinacional como a MSD, abrimos caminho para outras parcerias. É uma prova da capacidade do Butantan”, reforça Neuza.
O acordo prevê que as instituições compartilhem dados dos estudos clínicos e atuem em conjunto no desenvolvimento do imunizante, além de determinar as regiões do mundo onde cada uma terá prioridade na comercialização da vacina. O objetivo do Butantan é fornecer o produto ao Ministério da Saúde. O Butantan e a MSD compartilham um histórico de colaboração desde 2012, com o desenvolvimento das vacinas contra HPV e hepatite A, também fornecidas ao SUS pelo instituto.