Todos os anos, a vacina da gripe trivalente do Butantan é atualizada com as cepas do vírus influenza mais circulantes no hemisfério sul no ano anterior, de acordo com o monitoramento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso acontece porque o microrganismo causador da gripe tem poder de mutação muito grande, e há diversas variantes dele entre nós. Mas se a vacina da gripe é atualizada todo ano, por que ela não precisa passar por um novo ensaio clínico, como acontece quando um novo imunizante é desenvolvido?
Isso não é necessário porque a vacina da gripe é praticamente a mesma todos os anos. A única coisa que muda são dois componentes do patógeno selvagem circulante. Todo o restante do imunizante, que são as substâncias capazes de induzir a resposta imunológica, provém de um vírus seguro, que infecta, mas não causa doença em nenhuma ocasião: o PR8. Esse vírus foi isolado em Porto Rico e é usado na produção da vacina da influenza há algum tempo. O processo produtivo é o mesmo para toda e qualquer cepa vacinal recomendada a cada ano.
“Historicamente já foi mostrado que nunca houve problemas com a vacina porque ela é basicamente sempre a mesma e as mudanças são consideradas atualizações das cepas circulantes de influenza”, explica o pesquisador do Núcleo de Vacinas Bacterianas do Butantan, Paulo Lee Ho.
Como é avaliada a segurança das atualizações da vacina da influenza
A vacina da influenza é produzida a partir da inoculação do vírus da gripe em ovos embrionados de galinha. O vírus se replica e depois o material é purificado, fragmentado e inativado, dando origem ao antígeno da vacina. O primeiro passo disso tudo é o desenvolvimento, em laboratório, da “cepa vacinal” – uma versão do vírus que não causa doença e será inoculada no ovo.
Para um vírus infectar e ser o causador de uma doença, ele precisa de oito segmentos cromossômicos, entre eles a hemaglutinina (HA) e a neuraminidase (NA). Na cepa vacinal, o que se faz é uma espécie de mistura entre o vírus PR8 e o vírus selvagem circulante. São desenvolvidas diversas cepas com componentes dos dois vírus, porém o que é usado é aquele que contém seis componentes do PR8 e o componente genômico da hemaglutinina e da neuraminidase do vírus circulante selvagem.
Os dois segmentos do vírus circulante induzem o sistema imunológico a criar anticorpos contra o patógeno, enquanto o PR8 ajuda a atenuar o vírus vacinal. “Mesmo assim, no processo de produção da vacina pelo Butantan, esse vírus ainda é fragmentado e inativado, então a segurança é muito grande”, conta Paulo. Como os componentes majoritários são todos do vírus PR8 e já se mostraram totalmente seguros para aplicação em diversas campanhas, não é necessário realizar novos ensaios clínicos.
Outro motivo para não haver ensaios clínicos nas atualizações da vacina da influenza é que isso inviabilizaria as campanhas anuais: os ensaios clínicos da CoronaVac, vacina do Butantan e da Sinovac contra a Covid-19 feitas com a urgência exigida pela pandemia, e que partia de um imunizante já em desenvolvimento contra o vírus SARS-CoV, levou cerca de um ano para ficar disponível nos postos de saúde.
No Brasil, assim que os imunizantes da gripe são produzidos e validados pelo controle de qualidade do Butantan, eles são enviados ao Ministério da Saúde. Assim, o governo federal consegue iniciar a campanha de vacinação antes da chegada do inverno, época mais propícia para o recrudescimento do vírus influenza. “É impossível fazer testes clínicos de uma vacina que vai mudar todo ano”, afirma Paulo Lee. Fazer novos ensaios clínicos da atualização da vacina inviabilizaria a imunização da população antes da chegada do período mais frio.
Historicamente, após anos e anos de atualizações das cepas vacinais, nenhuma morte foi registrada em decorrência do imunizante – mais uma prova de que a técnica usada para o desenvolvimento da vacina da influenza é totalmente eficaz e seguro.
Em quais casos é necessário fazer testes clínicos da vacina da influenza?
Em geral, as variantes circulantes da influenza, que vão se mutando, são passadas de pessoa para pessoa e usadas como base da vacina sazonal. Quando o monitoramento de variantes da influenza feito pela OMS detecta um vírus animal capaz de infectar humanos, estes vírus são considerados potenciais vírus pandêmicos. No caso destas vacinas pandêmicas, são realizados ensaios clínicos de fase 1 em pequena escala. “Essas são cepas diferentes, não são sazonais. Elas são muito mais letais, com potencial infeccioso mais elevado e daí a necessidade maior de se verificar a sua segurança”, aponta o pesquisador Paulo Lee Ho.