Recalibrar a rota de destino e navegar por águas até então desconhecidas, mesmo tendo milhas de experiência em outros mares. Foi exatamente isso que a colaboradora Maria da Graça Salomão fez aos 54 anos de idade, quando aceitou deixar o cargo de pesquisadora científica do Laboratório de Herpetologia do Butantan, posição que ocupava há quase três décadas, para embarcar no maravilhoso mundo dos estudos de desenvolvimento, eficácia e segurança de vacinas, na área de Ensaios Clínicos e Farmacovigilância do Instituto.
Na época, o protocolo de fase 3 do imunizante contra a dengue, desenvolvido pelo Butantan, tinha acabado de ser aprovado e o setor precisava de reforços. “Não tive dúvidas de que seria uma oportunidade incrível, mas confesso que fiquei reticente em não estar à altura”, lembra.
Para acompanhar sua mente rápida, Maria da Graça utiliza três monitores em sua rotina de trabalho em Ensaios Clínicos
A bióloga não se intimidou diante da tal “síndrome de impostora” que teimou em aparecer e decidiu começar do beabá: aprofundou-se no conceito de ensaios clínicos, buscou entender por que era interessante para o Butantan internalizar essa estratégia e como poderia, de fato, contribuir para a consolidação e amadurecimento da área. Com caderno e caneta em punho, e sem nenhum constrangimento, questionava – bastante – seus colegas, a fim de sanar toda e qualquer dúvida.
“Entendi que a minha habilidade em pensar problemas de saúde pública e estruturar e redigir artigos científicos seriam a minha maior contribuição”. Quando começou a trabalhar no setor, em 2015, a pesquisadora já acumulava quase uma centena de estudos publicados. “Com o tempo, percebi que toda minha bagagem em relação a serpentes, identificação de espécies, sequenciamento de DNA e biodiversidade, também facilitaria outras rotinas, como o reconhecimento de novas linhagens virais e a inativação de vírus – processo utilizado no desenvolvimento de vacinas importantes, caso da Influenza do Butantan”, observa.
Hoje, Graça ocupa a posição de coordenadora de Redação Médica na área de Ensaios Clínicos – setor que saltou de quatro para 80 colaboradores ao longo de onze anos –, tornando-se peça fundamental não apenas para a ideação de estudos, estruturação de projetos e artigos, como também para a elaboração de protocolos, brochuras médicas e documentações condizentes ao processo de aprovação e registro de produtos imunológicos.
Além disso, é responsável por fazer a interface com agências reguladoras nacionais e internacionais, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Food and Drug Administration (FDA) e a European Medicines Agency (EMA). “Fui ganhando jogo de cintura e passei a entender informações importantes para que esses órgãos tivessem total clareza dos processos adotados por nossa instituição e os imunizantes por ela ofertados. Com isso, passei a antecipar e prever possíveis questionamentos em vários tipos de estudo clínico”, afirma.
Primeiro local de trabalho: antes de abrigar o atual Museu da Vacina, a Casa Rosa recebeu instalações relacionadas ao Laboratório de Herpetologia
Um universo em expansão
Antes de se interessar pelo controle de doenças imunopreveníveis e pesquisa clínica, Graça dedicou-se por anos a fio ao estudo da biologia e reprodução de serpentes, assim como a prevenção de picadas por animais peçonhentos e aos soros hiperimunes utilizados no tratamento de acidentes ofídicos, juntamente com a pesquisadora Selma Maria de Almeida Santos, atual diretora do Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEV).
A curiosidade em relação às serpentes começou durante o início do doutorado em Fisiologia Geral e Animal pela Universidade de São Paulo (USP), por influência do orientador Paulo Sawaya. Naquele mesmo ano, 1987, a bióloga ingressou no Butantan. “Na Herpetologia a rotina era bem diferente. Como eu desenvolvia pesquisa básica, existia uma maior autonomia para a formulação de perguntas balizadas pelo ‘conhecimento puro’ ou interesse do investigador”, avalia.
Já em Ensaios Clínicos, onde as demandas estão atreladas às necessidades sinalizadas pelo Ministério da Saúde ao Butantan, o foco é mais regulado. No geral, o objetivo é comprovar que o Instituto é capaz de entregar produtos seguros e efetivos, que impactam a qualidade da saúde pública brasileira.
“Estudar vacinas tem sido muito mais do que eu imaginei. Abri uma portinha e topei com um mundo admirável, completamente diferente.” As questões das Normas Regulamentadoras e das Boas Práticas (Clínicas e Fabris) foram algumas das novidades às quais precisou se adaptar rapidamente. Ainda que fossem adotadas no universo da pesquisa em Herpetologia, em Ensaios Clínicos existe a intersecção extremamente sincronizada entre as atividades laboratoriais, fabris e clínicas para as quais as Boas Práticas de Qualidade são fundamentais no registro dos imunizantes e soros hiperimunes.
Uma vez que passou a lidar com testes em seres humanos, Graça também aprendeu a elaborar uma série de documentos relacionados à bioética e obtenção de consentimento dos participantes nas investigações clínicas conduzidas pelo Butantan.
Atualmente, milhares de voluntários contribuem com os cerca de 30 projetos em andamento na área e que tem como principal objetivo atestar a segurança e eficácia de produtos relacionados ao controle de doenças como dengue, zika, chikungunya, influenza e Covid-19. “Estabelecer uma relação transparente com esses voluntários é crucial, até para desmistificar conceitos equivocados disseminados à população, como o de que participantes de estudos clínicos são ‘cobaias’. É uma desinformação que tem forte parcela de impacto na hesitação vacinal.”
Entre as principais conquistas dessa nova etapa, a redatora médica destaca com orgulho a conquista da pré-qualificação da vacina Influenza trivalente do Butantan pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que permite a exportação do imunizante para outros países e foi resultado de um esforço coletivo de diversas áreas do Instituto. Além de ter contribuído com a compilação de dados e documentos, Graça teve a honra de participar de comitês e reuniões com pesquisadores de diferentes partes do mundo, que ajudaram a corroborar a decisão.
"Ver minha imagem publicamente associada ao Instituto, com uma foto em frente à escadaria do Edifício Vital Brazil é o auge!"
Mente inquieta, espírito infantil
Com mais de 35 anos dedicados ao Instituto Butantan, a colaboradora nem pensa em parar e se enxerga no auge de sua trajetória profissional. “Mantenho o mesmo entusiasmo daquela jovem que, ainda no Ensino Médio, viu uma colônia de bactérias ao microscópio pela primeira vez e descobriu a existência de um mundo invisível”, recorda.
Foi a partir daquela imagem curada em azul de metileno que Graça escreveu alguns dos melhores e mais bonitos capítulos de sua história: o pós-doutorado na Universidade do País de Gales, no Reino Unido; o encontro com o primeiro marido de origem indiana e, consequentemente, com sua filha Sophia; as visitas a lugares do planeta até então inimagináveis; os achados proporcionados por cada pesquisa que conduziu; e as trocas enriquecedoras com os alunos que orientou.
"Muitos deles marcaram demais a minha jornada, como o inglês Ian Fowler, meu primeiro aluno bolsista da Fundação Butantan, onde passou um ano pesquisando sobre reprodução de serpentes; a saudosa Aracy Albolea, que infelizmente faleceu no ano passado, aluna de um projeto conduzido por mim e pela Selma Santos sobre serpentes não peçonhentas de interesse médico; e o Antônio Carlos Orlando Ribeiro da Costa, que hoje trabalha no Núcleo de Produções do Butantan e é conhecido carinhosamente por todos como Totô.”
Pesquisadora, mãe, madrasta, avó e esposa (agora de seu segundo marido), Graça credita sua vitalidade e encantamento à sua criança interior. “Ainda existem milhões de coisas que eu não sei, mas vou saber”, afirma. Uma delas é o aprendizado de uma língua que use como padrão um alfabeto diferente do romano, como o hindi, por exemplo. “Outra vantagem de manter esse olhar infantil é seguir dando risada de desenho animado, mesmo aos 62 anos de idade”, diz às gargalhadas. Sorte que ainda existem muitas páginas em branco para as inúmeras descobertas que estão por vir. “Sigo não me assustando pelo novo, é isso que me fascina.”
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Marília Ruberti