No Brasil, mais de 38 milhões de pessoas convivem com a hipertensão, sendo que boa parte desses pacientes lança mão do uso diário de simples comprimidos para controlar a chamada “pressão alta”. Dentre os fármacos mais prescritos para esse fim, inclusive listado na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais 2022, está o captopril, desenvolvido a partir de uma proteína encontrada no veneno da serpente jararaca (Bothrops jararaca).
“Temos o hábito de chamar de veneno as toxinas encontradas em secreções de seres vivos. Toxinas são substâncias de origem biológica – ou seja, produzidas por alguns animais, microrganismos, como fungos e bactérias, e até plantas –, com efeitos nocivos aos humanos e outros animais”, explica a diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) do Butantan, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi.
Tratam-se de misturas complexas, compostas por proteínas classificadas em diferentes famílias, além de outros elementos, que desempenham atividades específicas. Normalmente, as toxinas estão atreladas ao mecanismo de defesa dos seres vivos, contribuindo para a captura de presas. Ao longo do tempo, essas substâncias foram se “adaptando” conforme as necessidades de cada animal e, por isso, são tão efetivas em suas funções. No organismo humano, elas podem ocasionar ações locais ou sistêmicas – quando o elemento se liga a sistemas específicos ou é absorvido pela corrente sanguínea.
Compreender as especificidades de cada veneno pode levar à descoberta de novos alvos terapêuticos
Hoje, os pesquisadores já são capazes de entender os pontos focais de ação desses componentes em células, tecidos e órgãos. No caso do captopril, ao observar que toxinas chamadas peptídeos potenciadores de bradicinina (BPP), presentes no veneno da jararaca, provocavam uma queda de pressão arterial nas presas envenenadas, levando-as à perda da consciência ou até à morte, os cientistas desenvolveram um inibidor capaz de “relaxar” os vasos sanguíneos do corpo humano.
Apesar da substância ter sido isolada na década de 1960 pelo pesquisador brasileiro Sérgio Henrique Ferreira, no departamento de farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), foram necessários anos de estudos até se chegar à molécula utilizada no fármaco, além de mais um longo período de testes pré-clínicos e clínicos para comprovar a efetividade e a segurança do captopril. Para se ter uma ideia, o medicamento só foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), agência federal regulatória do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, no início da década de 1980. “Com muita dedicação à pesquisa e o auxílio de tecnologias, conseguimos transformar algo que, em um primeiro momento pode ser visto como negativo, em um resultado positivo”, observa.
Pesquisa de toxinas
Enquanto a toxicologia é a ciência que estuda os efeitos produzidos por substâncias químicas, a toxinologia é a área do conhecimento voltada à pesquisa das toxinas (essas produzidas por organismos vivos). Profissionais de diversas áreas podem se dedicar a esse campo, como biólogos, bioquímicos, microbiologistas, imunologistas, farmacêuticos, engenheiros, bioestatísticos, cientistas de dados e tantos outros que buscam entender desde a produção, composição e evolução dos venenos, seu modo de ação em diferentes sistemas, até a descoberta de novas moléculas e alvos moleculares.
É difícil precisar como surgiu o interesse pelo estudo das toxinas, uma vez que acidentes com animais peçonhentos acompanham a evolução humana. Na história das pesquisas científicas desse campo, o primeiro foco era impedir que indivíduos “picados” falecessem ou desenvolvessem condições graves por conta do envenenamento. Para isso, foi necessário entender a ação dessas substâncias e quais consequências desencadeavam. “Houve, também, a compreensão de que as toxinas são diferentes entre si, dependendo do ser produtor”, ressalta Ana Marisa. As observadas no veneno das jararacas (gênero Bothrops), por exemplo, são bem diferentes das encontradas no veneno das cascavéis (gênero Crotalus) – o mesmo padrão é observado entre outros representantes do reino animal.
Entender as especificidades de cada veneno foi crucial para o sucesso da soroterapia, que há mais de 120 anos vem salvando inúmeras vidas. Desenvolvidos pelo patrono do Instituto Butantan, o sanitarista Vital Brazil, os soros hiperimunes apresentam uma “combinação” de anticorpos capazes de reconhecer e bloquear as ações desencadeadas pelas toxinas presentes em um tipo de veneno. Por se tratar de anticorpos já prontos, produzidos em um outro corpo – no caso, o dos cavalos –, os soros têm ação rápida, impedindo o desenvolvimento de possíveis danos ao organismo.
Depois de entender os diferentes elementos contidos no veneno e suas respectivas ações, é possível avançar para um outro estágio da toxinologia: a busca por alvos terapêuticos. Isso significa identificar alvos específicos em células e entender o que essa ligação (toxina + alvo) vai desencadear. “Essas misturas de elementos que compõem os venenos podem revelar moléculas com efeitos não esperados. Da mesma forma que observamos uma protease – mecanismo de ativação ou inativação de enzimas –, é possível encontrar inibidores que, em determinados modelos, apresentam efeitos benéficos. Embora saibamos que a maioria das toxinas induzem efeitos inflamatórios, é possível encontrar moléculas com ação anti-inflamatória ou mesmo regenerativa”, afirma Ana Marisa.
Não à toa, pesquisas com toxinas de origem animal têm contribuído para a compreensão de problemas vasculares, neurológicos, processos inflamatórios, entre outros. “A partir desse conhecimento, podemos desenhar medicamentos de interesse para a saúde pública para doenças que ainda não têm cura, como as degenerativas”, completa.
Colaboradora do CENTD realiza análise: objetivo do centro é identificar e validar alvos moleculares revelados por toxinas e outras secreções animais
Cadeia completa
Como um dos maiores produtores de soros hiperimunes do mundo, o Butantan tem capacidade de realizar a cadeia completa, “da pesquisa ao produto”. Aqui, os pesquisadores estudam desde a composição e a evolução dos venenos, o impacto provocado pelos envenenamentos, até a tentativa de sugerir novos produtos a partir desse conhecimento.
O instituto mantém o Programa de Pós-Graduação em Ciências – Toxinologia (PPGTox), único na especialidade, e sedia o Centro de Excelência para Descoberta de Novos Alvos Moleculares (CENTD), um projeto realizado em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a farmacêutica GSK que busca identificar e validar alvos moleculares envolvidos em doenças inflamatórias, como artrite e artrose, com o objetivo de desenvolver novos fármacos a partir da descoberta de novos alvos moleculares revelados por toxinas e outras secreções animais.
Para Ana Marisa, que também é coordenadora do CENTD, direcionar um olhar atento à biodiversidade é uma vertente importante da pesquisa científica. Na busca por alvos terapêuticos relacionados à proteção e regeneração celular, os pesquisadores têm se debruçado na ação da toxina das lagartas, por exemplo, uma vez que, do ovo à lagarta e da lagarta à mariposa, a espécie passa por diversos processos regenerativos.
“Nossa visão é utilizar as informações levantadas na pesquisa de base para servir quem está lá na ponta. Nada é desconectado. É por isso que o Butantan é um dos grandes centros mundiais especializados no estudo de venenos”, finaliza a cientista.
Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Comunicação Butantan