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Estudo de infecção controlada: o que significa e o que tem a ver com novas vacinas?

Também conhecido como estudo de desafio, modelo conta com voluntários em vários países, mas não é realizado no Brasil


Publicado em: 15/01/2025

Reportagem: Camila Neumam
Fotos: Renato Rodrigues

 

Você sabia que há pessoas que são infectadas por patógenos de forma voluntária para acelerar estudos de vacinas e remédios? Elas são minuciosamente analisadas por cientistas, que trabalham na pesquisa e no desenvolvimento de novos medicamentos e imunizantes atrelados às diretrizes éticas determinadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). São os chamados Estudos de Infecção Humana Controlada (CHIS, na sigla em inglês), também conhecidos como Ensaio de Desafio Humano ou Modelo de Infecção Humana Controlada (CHIM, na sigla em inglês), que só podem ser feitos com adultos saudáveis e para doenças curáveis com medicamentos.

Estes estudos já são autorizados e vêm sendo realizados em diversos países europeus, africanos e da América do Norte para testes de eficácia, de percepção de patogenicidade, em pesquisas de biomarcadores e na investigação de transmissão de patógenos, como vírus e bactérias. 

Os estudos de desafio mais recentes testam novas possíveis vacinas contra doenças como malária, Zika, esquistossomose e Shigella (um conjunto de bactérias resistentes a medicamentos que causam diarreia severa e alta mortalidade de crianças em países africanos) e estão sendo feitos no Quênia e em Uganda, e na Tailândia em parceria com países europeus e com os Estados Unidos. No Brasil este tipo de estudo não é autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que considera que existem métodos alternativos para testar a eficácia das vacinas e infecções.

 

Dados

Uma revisão sistemática de modelos de infecção humana controlada realizados entre 1980 e 2021 em vários países, publicada em 2023 no periódico Clinical Infectious Diseases, da Universidade Oxford, da Inglaterra, demostrou que os eventos adversos graves são muito raros nestes estudos. Os dados, que envolvem mais de 15.000 participantes, apontaram 0,2% de eventos adversos graves.

No Brasil, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade George Washington e a Baylor College of Medicine, ambas nos Estados Unidos, tem conduzido um estudo de Modelo de Infecção Humana Controlada para duas vacinas contra ancilostomídeos (um grupo de parasitas que causa infecções intestinais crônicas e anemia), ambas já testadas em estudos de fase 1 nos Estados Unidos. 

Uma destas candidatas vacinais mostrou bons resultados em voluntários americanos que foram imunizados e, posteriormente, tiveram suas amostras de soro desafiadas com larvas de Necator americanus. Os anticorpos presentes nas amostras foram capazes de reconhecer os antígenos.


Vantagens e desvantagens

Entre os benefícios do uso de CHIM estão a aceleração das soluções de saúde pública, sobretudo o desenvolvimento de novas vacinas e terapias; seleção das melhores candidatas vacinais e terapêuticas nos estágios iniciais de desenvolvimento; e otimização de tempo e recursos humanos e financeiros, com o descarte precoce de produtos pouco promissores. Com isso, o método reduz a exposição da população a produtos experimentais. 

Segundo uma análise publicada em 2020 na revista Seminars in Immunology, vacinas levam em média 10,7 anos para serem desenvolvidas, e cada candidata tem uma probabilidade de 6% de entrar no mercado. “Os estudos CHIM podem fornecer informações sobre a eficácia da vacina, proteção contra cepas específicas de patógenos e resistência em um pequeno número de voluntários. Eles podem, portanto, facilitar a seleção de candidatos a vacinas mais promissores em desenvolvimento, que podem então ser validados quanto à sua eficácia em ensaios de fase 3 em larga escala”, descreve o artigo.

Para garantir a segurança, o método deve atender altos padrões científicos e éticos, de modo a não colocar os voluntários em risco. “O agente da doença [usado no estudo] é bem caracterizado, frequentemente atenuado e fabricado sob as atuais Boas Práticas de Fabricação”, aponta a análise.


 

Histórico

Os estudos de Infecção Humana Controlada iniciais testaram vacinas contra varíola, febre amarela e malária, trazendo contribuições importantes para o tratamento e prevenção dessas e de outras doenças infecciosas. Nos últimos 50 anos, eles vêm sendo realizados em milhares de voluntários adultos sob a supervisão dos comitês de ética em pesquisa. “Esses estudos ajudaram, por exemplo, a acelerar o desenvolvimento de vacinas contra a febre tifoide e cólera, e determinar correlatos de proteção imunológica contra influenza”, segundo a OMS.

Em maio de 2020, diante da pandemia de Covid-19, a OMS desenvolveu critérios-chave para estudos de desafio de candidatas vacinais contra Covid-19. Eles teriam de cumprir uma série de requisitos para garantir que a investigação fosse conduzida de acordo com os mais elevados padrões éticos. Na época, a OMS admitiu, porém, que tais pesquisas são eticamente sensíveis e devem ser cuidadosamente concebidas e conduzidas. 

 

Desafios

Em 2023, a Quarta Reunião Internacional do Modelo de Infecção Humana Controlada, organizada pela Iniciativa Europeia de Vacinas (EVI) e pela Aliança Internacional para Padronização de Biológicos da Europa (IABS), destacou que estudos CHIM ainda se concentram em países de alta renda, e que a falta de uma estrutura regulatória é o principal obstáculo para a implementação dessas pesquisas em países de baixa e média renda. A reunião incluiu participantes de entidades internacionais, como a European Medicines Agency (EMA) e Food and Drugs Administration (FDA), e brasileiras, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

O método requer avaliação e monitoramento éticos rigorosos, equipes de estudo altamente qualificadas, além de uma equipe clínica com conhecimento de ensaios clínicos e do microrganismo a ser estudado. Vale ressaltar que, como o nome diz, trata-se de uma infecção controlada, feita dentro de ambiente hospitalar e sem uso de patógenos letais.

 

Fontes: 

A Systematic Review of Human Challenge Trials, Designs, and Safety

Comitê Consultivo de Desenvolvimento de Produto para Vacinas (OMS) 

Controlled Human Infection Model studies (The Academy of Medical Sciences)

Fourth Controlled Human Infection Model (CHIM) meeting – CHIMs in endemic countries, May 22–23, 2023

Geo-Helmintíase (Ministério da Saúde)

Infectious Diseases Society of America 2024 Guidance on the Treatment of Antimicrobial-Resistant Gram-Negative Infections

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Key criteria for the ethical acceptability of COVID-19 human challenge studies 

Shigella - Organização Mundial da Saúde