O dedo do meio da mão direita que toca divinamente o violão, recita orquestras, escreve livros, cria marcos emblemáticos para o Brasil, como o hino nacional em tupi guarani, e os jogos indígenas de São Paulo recebeu uma dolorosa picada de jararaca em meados de abril. A sorte do violonista mestre Robson Miguel, de 62 anos, foi ter sido tratado no Hospital Vital Brazil (HVB), do Instituto Butantan, onde tomou o soro antiofídico e permaneceu internado por cinco dias até a cura.
A experiência foi diferente de tudo que o músico já passou. E olha que Robson Miguel tem uma história de vida impressionante graças a sua incrível habilidade no violão, que lhe fez se tornar uma referência no Brasil e na Europa e tocar sua ampla discografia para realezas, além de ter sido eleito o primeiro cacique cafuzo (filho de negro com indígena) tupi guarani do Brasil. Robson é o líder da Aldeia Guarani de Itaoca, em Mongaguá (SP), desde 1999.
Picada em dedo que toca o violão
Infelizmente seu currículo e seu costume de imobilizar cobras nas aldeias por onde viveu no Espírito Santo, no litoral e interior paulistas, não lhe pouparam do acidente. Na noite escura e chuvosa de 5 de abril, Robson sentiu a picada após tentar mobilizar a serpente dentro do castelo turístico onde vive em Ribeirão Pires (SP).
“Muito cedo eu perdi o medo de animais peçonhentos por viver em região de mangue onde era comum enfiar a mão em buracos, pegar caranguejo e serpentes. Mas nunca uma cobra tinha me pegado; essa é a diferença de quando você tem 30 anos e um reflexo rápido, e quando tem 62 anos, quando o reflexo não é mais o mesmo”, disse ao fim da consulta no HVB, após a quarta microcirurgia no dedo lesionado.
Naquela noite, o poderoso veneno da jararaca lhe causou um apagão e, após chegar ao hospital local, ele foi transferido. Já no Vital Brazil, Robson recebeu quatro ampolas de soro antibotrópico e passou por três microcirurgias no dedo que já estava em processo de necrose, além de lhe causar uma dor lancinante. Quem atendeu o músico durante a internação e no acompanhamento ambulatorial foi o médico cirurgião Jefferson C. Murad, plantonista do HVB.
“A serpente picou a ponta do terceiro dedo da mão direita. Então, eu fiz duas perfurações na unha dele onde tinha hematoma para drenar o sangue e na ponta do dedo fiz um desbridamento superficial. Foi removido esse tecido e a recuperação dele vai ser excelente daqui para frente.”, explica o cirurgião.
Medo de encerrar a carreira
Diante da situação, o culto e bem humorado músico confessa que sentiu medo de perder a função do dedo e ter que encerrar a carreira de 50 anos. Mas o receio foi mudando à medida que o tratamento fazia efeito e a equipe do hospital se mobilizava para oferecer bem estar físico e emocional a Robson.
“Cheguei a pensar que poderia perder pelo menos a falange porque necrosou muito e que isso poderia me impedir de tocar. Mas a esperança chegou quando o doutor Jefferson e toda a equipe me trataram com excelência, com remédios e palavras de fé e até tocaram violão para mim dizendo que eu voltaria a tocar”, descreve o violonista.
Os cinco dias de internação foram para acompanhar a evolução do ferimento no dedo e a ausência de sintomas físicos e neurológicos que poderiam ser causados pelo envenenamento. Apesar disso, Robson conta que logo que recebeu as doses do soro e medicamentos, a dor que lhe afligia sumiu e ele começou a se sentir melhor.
“Quando eu cheguei, a equipe rapidamente aplicou as doses do soro, analgésico, ficaram aferindo a pressão e aquela dor tão intensa desapareceu. Eu dormi tranquilamente e iniciei o tratamento com a equipe observando exames de urina, sangue a cada hora.”
Mesmo com o dedo recém-operado, o virtuose desenvolveu uma técnica para tocar com um dedo a menos, o que lhe permite recitar pérolas do cancioneiro popular brasileiro e mundial com maestria.
“Estou muito feliz e estou conseguindo até tocar bastante coisa. Tenho certeza que as obras virtuosas vão voltar em breve, graças à excelência do Butantan e a Deus”, reforçou.
Soros que curam
Segundo Robson, é bastante simbólico ter sido tratado em um hospital com o nome do criador dos soros antiofídicos Vital Brazil, dentro do Butantan, palavra de origem indígena que significa terra muito dura (Bun = terra; tan tan = muito dura).
“Essa parceria entre a cultura indígena agregada à ciência é simbólica. O embasamento indígena é empírico, baseado só na observação e sem comprovação científica. Vital Brazil teve a visão de descobrir e analisar as cobras que mais faziam vítimas no país e desenvolver os soros que salvam vidas”, disse.
Já com violão no colo, tocando com um dedo a menos o clássico “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, o músico cantou sobre o criador de sua cura. “Vital Brasil era um visionário e quando ele criou o soro, pensou no próprio nome dele, porque não tem nome mais brasileiro do que Vital Brazil. Onde ele vai, vai levando o nome do nosso país no seu próprio nome. E ele entendeu que esse soro não vinha para curar só europeus imigrantes, mas também indígenas, negros brancos, o mundo.”