Portal do Butantan

Por que ainda precisamos de doses de reforço se a Covid-19 mata cada vez menos?

Com base nos marcadores disponíveis, a ciência já sabe que quem tem um nível mais alto de anticorpos está mais protegido contra a ômicron


Publicado em: 23/03/2023

Quando a vacinação contra a Covid-19 começou no Brasil, em janeiro de 2021, o país tinha acabado de bater a marca de 200 mil mortes causadas pela doença. Em breve, a pandemia alcançaria seu auge no país: o mês de abril de 2021 se tornou o mais letal, com 67.723 mortes confirmadas. Foi só em julho, com a vacinação mais avançada, que o número de óbitos começou a cair. No final daquele mês, dados do LocalizaSUS, do Ministério da Saúde, apontaram queda de 42% na quantidade de mortes por Covid-19 – na ocasião, 96 milhões de brasileiros tinham recebido ao menos uma dose da vacina.

Desde o início de 2023, o número de mortes devido ao SARS-CoV-2 se mantém inferior a mil a cada semana epidemiológica – na décima semana, entre os dias 5 e 11/3, foram 324 óbitos, enquanto o número de novos casos foi de 59.994, segundo dados do Portal Coronavírus, do Ministério da Saúde. Ou seja, a Covid-19 ainda mata, principalmente não vacinados e pessoas com comorbidades, mas em proporções bem menores do que em 2021. 

O cenário da pandemia mudou com a imunização massiva. Mais de 80% da população brasileira completou seu esquema primário de vacinação, mas as doses de reforço não tiveram a mesma aderência. Conforme informações do Ministério da Saúde, até o final de 2022 mais de 69 milhões de brasileiros não voltaram aos postos de saúde para receber a primeira dose de reforço, e 32,8 milhões não haviam recebido o segundo reforço. 

O Ministério da Saúde recomenda uma dose adicional para pessoas a partir dos 5 anos e duas doses de reforço para adultos, que devem ser administradas após 4 meses da última dose. No estado de São Paulo, o segundo reforço é liberado para maiores de 18 anos, e há ainda um terceiro reforço, com vacinas bivalentes, indicado para idosos, imunossuprimidos e populações vulneráveis.

 

Por que começou a vacinação de reforço?

As doses de reforço foram instituídas porque os pesquisadores compreenderam, com o acompanhamento dos primeiros vacinados a partir de 2020, que o nível de anticorpos protetores contra o SARS-CoV-2 no organismo humano diminui rapidamente – uma característica da interação entre o sistema imunológico e o SARS-CoV-2 comum a todas as tecnologias e marcas de vacina. Além disso, com o tempo, o vírus foi mutando, o que tornou necessário elevar o nível de anticorpos a fim de que a imunização fosse eficaz contra as novas variantes.

No entanto, diversas pesquisas indicam que a resposta dos anticorpos, chamada humoral, é menos importante que a resposta celular – aquela dependente dos linfócitos T, que fazem com que o organismo combata o patógeno pela produção de enzimas tóxicas ou sinalização para a destruição de células infectadas. O problema é que os estudos de imunidade celular são caros, feitos por um número limitado de laboratórios e enfrentam mais resistência para conseguir voluntários (é preciso doar uma quantidade elevada de sangue para permitir o isolamento das células).

A realidade que se tem hoje para medir a resposta da população vacinada ao coronavírus, portanto, são os marcadores de anticorpos. E é para elevar esse número de tempos em tempos, e manter as pessoas protegidas apesar do declínio natural na proteção do organismo, que as doses de reforço são utilizadas. E isso é válido mesmo que a cepa vacinal já não seja a que está em circulação – a maioria dos imunizantes ainda usa o vírus original de Wuhan, província chinesa onde a pandemia começou, e não a variante ômicron, predominante no mundo atualmente.

“Alguns dizem: ‘ah, mas os anticorpos contra a Wuhan não neutralizam direito a ômicron’. Pode ser verdade, mas junto com esse nível de anticorpos vem o estímulo de outras coisas do sistema imunológico, que não conseguimos medir”, salienta o pesquisador científico e diretor do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, Renato Astray. “O marcador que temos são os anticorpos. E nós sabemos que a pessoa que tem um nível alto de anticorpos responde bem contra a ômicron, seja pelos anticorpos, seja por outro motivo.”

 

Se o número de mortes por Covid-19 caiu, não significa que a doença está controlada? 

As primeiras versões de vacinas foram desenvolvidas tendo como alvo primário reduzir o número de mortes e casos graves, e secundário diminuir a taxa de transmissão. E ambos objetivos foram alcançados. Mas isso não quer dizer que o SARS-CoV-2 parou de matar ou de infectar pessoas. De acordo com o Portal Coronavírus, do Ministério da Saúde, do início de 2023 até meados de março, já foram registrados mais de 5,7 mil óbitos causados pela doença. Só no dia 23/2 houve 453 mortes por Covid-19, conforme o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Resumindo: a pandemia ainda está longe de acabar, e continua matando no Brasil. 

A médica infectologista Fabíola Rocha Setúbal, que participou de ensaios clínicos ligados à Covid-19 e atendeu pacientes com a doença no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, lembra que a queda no número de casos, na comparação com os dados de 2021, é uma situação de agora, mas que pode mudar. “A segunda dose tem um ano. Ainda temos um certo grau de proteção, mas não sabemos quanto vai durar. A dose de reforço complementa, potencializa a resposta imunológica e garante que tenhamos mais tempo com uma boa eficácia contra a forma grave da doença”, explica.

A médica infectologista concorda que a resposta imunológica é muito complexa e que os anticorpos neutralizantes não dão um retrato fidedigno da proteção de uma pessoa. E que é nesse cenário de incerteza que a dose de reforço se torna nossa principal arma contra a Covid-19. “Ainda não conseguimos medir a resposta celular. Até isso acontecer, por enquanto, a gente ainda vai ter que tomar doses de reforço”, completa Fabíola.