É longo o caminho que uma vacina ou medicamento percorre para chegar à população. O ponto de partida são os ensaios pré-clínicos, em laboratório, nos quais o produto é testado exaustivamente em escala celular e em modelos animais. Se os resultados forem positivos, indicando que ele provavelmente será seguro e eficaz em seres humanos, começam os ensaios clínicos. Essa parte da pesquisa é dividida em quatro etapas: a fase 1 tem o objetivo de validar a segurança e tolerabilidade em um pequeno grupo homogêneo de pessoas; a fase 2, segurança e eficácia em uma população maior, com centenas de indivíduos; e a 3 serve para confirmar a eficácia em um número muito maior de participantes, na faixa dos mil. Com os resultados de fase 3 em mãos, o fabricante pede a autorização de uso junto ao órgão regulador – no caso do Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Se a vacina ou medicamento for considerado seguro e tiver no mínimo 50% de eficácia, ele está pronto para ser aplicado na população.
Mas os ensaios clínicos nem sempre param por aí. Após a autorização do órgão regulador, é possível conduzir ainda a fase 4 da pesquisa, também chamada de “estudo de vida real”. Ela acontece depois que o produto é aprovado e disponibilizado no mercado, e consiste em acompanhar os possíveis efeitos adversos a longo prazo para garantir sua segurança e reunir mais informações sobre a efetividade do medicamento ou vacina em um número maior de pessoas.
Um dos modelos de fase 4 é a farmacovigilância ativa – um estudo clínico que recruta voluntários para traçar o perfil de segurança de um produto. É nesta etapa que se avalia o imunizante ou tratamento em públicos específicos, como gestantes, bebês e imunossuprimidos, porque são grupos mais vulneráveis a reações adversas e, portanto, não devem ser expostos nas primeiras fases de um estudo.
“O ensaio clínico de fase 4 permite acompanhar os eventos adversos por um período maior de tempo, geralmente um ano, e em uma maior quantidade de pessoas, ajudando a identificar outras possíveis reações que não haviam sido descobertas na fase 3”, explica a pesquisadora científica e responsável pela Farmacovigilância do Butantan, Vera Gattás.
Vale ressaltar que, quando uma vacina ou terapia é aprovada na fase 3 de ensaios clínicos e chega ao mercado, é porque ela teve sua segurança e eficácia atestados em análises feitas com um grande número de pessoas. No entanto, após a comercialização, ainda é possível encontrar reações adversas raras – aquelas que só podem ser identificadas depois que o produto foi aplicado em milhares ou milhões de indivíduos.
Existe ainda a farmacovigilância passiva, quando as pessoas que tomaram a vacina ou o remédio entram em contato com o fabricante para relatar eventos adversos. Esse tipo de análise acontece continuamente após a liberação de um produto no mercado. O Butantan recebe notificações por meio deste formulário e do SAC 0800 701 2850. No Brasil, os relatos de eventos adversos de vacinas e medicamentos são recebidos pelo sistema de notificação e-SUS Notifica, do Ministério da Saúde, ou pelo sistema VigiMed, da Anvisa.
Atualmente, o Butantan está conduzindo o ensaio clínico de fase 4 da CoronaVac para avaliar o perfil de segurança da vacina e a frequência de reações adversas em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos. O protocolo irá incluir 2 mil voluntários dos estados de São Paulo, Pernambuco, Amazonas, Roraima, Sergipe e Distrito Federal, que serão acompanhados durante um ano. A CoronaVac já se mostrou altamente segura e eficaz para o público pediátrico em estudos anteriores.
O medicamento que causou malformação congênita em bebês
No final dos anos 1950, o caso da talidomida marcou a história da regulamentação de medicamentos e mostrou a importância da farmacovigilância. Lançada em 1956, a substância age regulando o sistema imune e reduzindo a inflamação, e era administrada em gestantes para reduzir o enjoo matinal, entre outras aplicações.
Nos anos seguintes, foram reportados cerca de 10 mil casos de bebês com malformações congênitas graves, com taxa de mortalidade de 40%. Depois dos relatos, o uso da talidomida foi proibido para gestantes e mulheres com intenção de engravidar. Hoje, o medicamento é usado para tratar hanseníase, lúpus eritematoso e mieloma múltiplo.
“A farmacovigilância já vinha sendo estudada, mas foi a tragédia da talidomida que impulsionou a sua aplicação. A partir daquele momento, o mundo começou a avançar em propostas para melhorar a segurança na distribuição de remédios para a população. Ficou claro que era necessário um controle de qualidade para cada parte do processo de produção”, conta Vera.
Regulamentação internacional
Em 1968, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fundou o Programa Internacional de Monitorização de Medicamentos (PIMM) com o objetivo de facilitar a disseminação de informações sobre eventos adversos. Cada país membro é responsável pela criação de um sistema próprio para coleta e avaliação de casos de efeitos adversos, que são reunidos em uma base de dados internacional. O Brasil integra o programa desde 2001, por meio do Centro Nacional de Monitorização de Medicamentos da Anvisa.
A OMS também conta, desde 1999, com o Comitê Consultivo Global sobre Segurança de Vacinas (GACVS), que reúne especialistas independentes do mundo inteiro para fornecer consultoria sobre a segurança de imunizantes, baseando-se nas evidências científicas disponíveis na literatura.