Portal do Butantan

De caixa de supermercado a coordenador do Butantan: para Marco Antonio de Oliveira, a “diversidade tem que ser vivida e vista”

O coordenador de Bioestatística do Butantan conta como a persistência e as boas oportunidades o levaram a lugares tidos como inalcançáveis para pessoas negras


Publicado em: 17/11/2023

Os pais de Marco Antonio de Oliveira nunca verbalizaram, mas se esforçaram arduamente para que ele pudesse estudar. Analfabetos, sabiam que o estudo que lhes havia sido negado abriria portas para o filho, e ele agarrou a oportunidade com todas as forças. Na cabeça do menino pobre e preto de Catanduva, no interior de São Paulo, a escolha era clara: se não estudasse, a vida seria ainda mais difícil. Hoje, aos 44 anos, depois de ter trabalhado como caixa de supermercado, atuado com serviços administrativos e sido professor em escola pública, Marco Antonio é coordenador de Bioestatística do Butantan e pode finalmente dizer que chegou lá – ou, pelo menos, está chegando perto.

“O sacrifício dos meus pais fez toda a diferença para que eu tenha trilhado o meu caminho. Conforme fui tendo consciência da minha condição social, entendi que os estudos eram um meio para mudá-la”

O primeiro e grande passo foi se formar em Matemática na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), em São José do Rio Preto. Só aí, Marco Antonio já contrariava as estatísticas: de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 15,3% da população preta e parda jovem está no ensino superior. Para Marco, que estudava à noite e trabalhava por longos períodos durante o dia, a evasão estava a um passo de distância. 

Apesar das adversidades, Marco fez duas graduações e foi além, tornando-se mestre em Ciências e Inovação em Saúde

 

Depois da graduação, na contramão do que era esperado, o matemático não parou mais. Se especializou na mesma área pela Universidade Federal de São João del-Rei e depois migrou para a Estatística, sua segunda graduação, completada no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP). 

Cada um desses títulos veio acompanhado de uma batalha, já que as universidades ficavam em cidades diferentes e Marco tinha que refazer sua vida toda vez que resolvia buscar mais capacitação. Nessas mudanças drásticas, o estatístico passeou por profissões variadas, que culminaram em uma carreira de 13 anos na educação. 

Foi como professor de Matemática do ensino público que ele percebeu com mais clareza a importância da representação negra nos espaços e qual era o seu papel, para além de educador. “Certa vez, ao ministrar aula em uma turma de Ensino Médio, aconteceu algo. Era o primeiro dia de aula. Quando entrei, notei um burburinho e uma aluna negra acabou pensando alto demais. Ela disse: ‘finalmente um professor negão’.” A ocasião o marcou profundamente, reforçando o mantra de sua vida: a educação é fundamental para mudar vidas.

 

Após atuar 13 anos como professor de Matemática, ingressou na área de estatística em pesquisas científicas

 

Migração para a área da saúde

Por volta de 2014, Marco decidiu dar uma guinada profissional arriscada — buscar uma nova área de atuação. Com a formação em exatas, foi migrando aos poucos para a área da saúde, ainda que continuasse lecionando. Durante sua atuação como bioestatístico no Hospital de Câncer de Barretos, desenvolveu uma aplicação web para monitoramento e predição de taxas de detecção de câncer de mama. A iniciativa foi tema da sua dissertação de mestrado e essencial para a obtenção do título focado em Ciências e Inovação em Saúde, pelo programa conjunto entre a Fundação PIO XII e Faculdade de Ciências da Saúde de Barretos (FACISB). Com o tempo, Marco Antonio passou a trabalhar integralmente com suporte estatístico para pesquisas científicas na área da saúde.

Os esforços durante nove anos culminaram em uma promoção para coordenador e, posteriormente, na sua contratação pelo Butantan. Infelizmente, no entanto, a diversidade racial na liderança ainda é uma raridade no Brasil. De acordo com a segunda edição do informativo Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, do IBGE, o percentual de pessoas negras em cargos gerenciais é de 31%, em contraste com os 69% de pessoas brancas. Para Marco, essa disparidade deve ser um motivador, um estímulo para pessoas negras. “A cor da sua pele não pode definir onde você deve ou não estar. Siga firme nos seus objetivos, busque apoio para driblar os obstáculos, mas não desista”, aconselha.

No Butantan, Marco é responsável pela equipe de Bioestatística desde abril de 2023

 

Trabalho no Butantan e expectativas para o futuro

Marco exerce hoje o cargo de coordenador do time de Bioestatística do Butantan, equipe responsável pela análise e interpretação de dados resultantes de pesquisas científicas, em especial as que saem da Divisão de Ensaios Clínicos. Isso inclui o planejamento e elaboração de informações referentes à qualidade e segurança das vacinas e soros fornecidos pelo Instituto ao Ministério da Saúde. É uma tarefa complexa, mas essencial para garantir que a população receba os melhores imunobiológicos disponíveis. A previsão de Marco para o futuro é que suas competências na área continuem se desenvolvendo, de modo que ele consiga aperfeiçoar o estudo de dados com a utilização de novas tecnologias, por exemplo.

Com sete meses de Butantan, o bioestatístico se dedica para que a excelência de seu trabalho prevaleça antes de qualquer pré-concepção.

“Sempre tive a preocupação de que a cor da minha pele ou minha orientação sexual não fossem a primeira informação a chegar sobre mim em nenhum ambiente de trabalho. Me dedico arduamente em tudo que faço para que o meu trabalho enquanto profissional seja o mais importante.” 

Marco ao lado de seu companheiro, Jeverson, e seu cachorro Gohan


A representatividade tem que ser real

Em família, as conquistas de Marco são sempre comemoradas: é um alívio perceber que a educação pela qual tanto lutaram tem dado frutos. Parte importante da motivação vem do companheiro, Jeverson, com quem Marco se relaciona há quatro anos. O casal vive em São Paulo faz alguns meses com o cachorro Gohan.

“Eles se sentem orgulhosos ao me ver na posição de coordenação em uma instituição tão renomada como o Butantan. E a nova geração da família, como meus sobrinhos em idade escolar, tem um exemplo próximo e real de que é possível alcançar êxito”

Mas ainda há muito a mudar: a representatividade tem que ser real. Como parte de uma sociedade diversa, seria natural encontrar, sem distinções, pessoas dos mais diferentes tipos em cargos e funções variadas. Não é o caso do Brasil: 47,3% das pessoas pretas e pardas vivem do trabalho informal, como apontam dados da primeira edição do informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. “Não adianta divulgação, bandeira hasteada, se não for possível ver ninguém. A diversidade tem que ser vivida e vista”, discorre.

Para Marco Antonio, a situação que o marcou em sala de aula, da aluna que viu no professor um futuro possível, ilustra bem a questão: a verdadeira representatividade são as oportunidades de estudo e trabalho, que servem para que outras pessoas enxerguem um semelhante em uma posição que parece inalcançável.

Marco nasceu e cresceu em Catanduva, interior de São Paulo; hoje, mora na capital e visita a família regularmente

 


Reportagem: Guilherme Castro

Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan e arquivo pessoal