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“Temos que estimular negros em cargos de liderança para saberem que existe um caminho”, diz gestor médico do IB

O infectologista moçambicano José Moreira acredita que a inclusão de negros na gestão quebra o ciclo do racismo no Brasil


Publicado em: 18/11/2022

“Quando uma pessoa vê um negro em um cargo de destaque, no Legislativo, no Judiciário, em grandes corporações, ela percebe que existe um caminho, uma chance. E pensa: Por que não ser igual a ele?” Para o médico infectologista José Moreira, de 34 anos, gestor de pesquisa clínica do Instituto Butantan, é esse tipo de estímulo que vai permitir que mais pessoas negras ocupem cargos de gestão – uma realidade ainda pouco comum, inclusive na ciência.

O especialista em Medicina Tropical e doutor em pesquisa clínica de doenças infecciosas pela Fundação Oswaldo Cruz hoje é um dos responsáveis pela gestão dos projetos que envolvem as vacinas da dengue, chikungunya e zika estudadas pelo Butantan. Natural de Maputo, no Moçambique, José é formado em Medicina pela Universidade Eduardo Mondlane, onde resolveu estudar doenças tropicais, o que o trouxe ao Brasil 10 anos atrás.

Neste tempo no país, José percebeu que faz parte de uma minoria da minoria, “um médico negro em cargo de gestão”, fruto de uma sociedade calcada no racismo “individual, institucional e estrutural”, argumenta.

“Existe uma hegemonia da raça branca no Brasil. A maioria das pessoas no poder são homens, brancos, cisgêneros [pessoas que se identificam com o sexo biológico]. Temos que quebrar esse ciclo por meio de programas de inserção social, como as cotas que já existem nas universidades, e de mais políticas que façam com que os indivíduos negros se sintam representados”, afirma.

Apesar de não ser brasileiro, José conhece bem as peculiaridades de nossa sociedade. Em seus anos de mestrado e doutorado, viu de perto o drama das crianças nascidas com microcefalia em decorrência do vírus da zika ao trabalhar no Recife (PE). Ele também sentiu o forte impacto dos surtos de dengue na saúde pública nas diferentes regiões do país, e observou poucos negros ocupando espaços de liderança na saúde e na pesquisa.

“Quantos médicos negros e em cargos de liderança você conhece? Eu posso contar nos dedos e olhe lá. Geralmente os médicos vêm de famílias de médicos e na comunidade acadêmica a maioria ainda é de brancos com sobrenomes italianos e alemães. Você vê mais negros como técnicos de enfermagem, enfermeiros, não nas residências. Temos que nos perguntar por que isso acontece”, questiona.

José se formou médico por insistência da mãe, mas não se arrependeu da escolha. Bom aluno desde sempre, sabia que enveredaria pelas ciências biológicas. Suas excelentes notas lhe permitiram entrar na então única universidade pública de Moçambique e no curso mais concorrido, o que causou grande orgulho para a família de classe média.

“Pude estudar em boas escolas, passar em uma universidade pública e fazer medicina, falo vários idiomas, o que nem todo mundo consegue e agradeço minha família por isso. Nem no meu país isso é algo para todos, porque lá, apesar da maioria ser negra, os brancos ainda são vistos como superiores”, conta.

Mas foi no Brasil que José resolveu fazer carreira como pesquisador e hoje, no Butantan, trabalha no sentido de ajudar o país a ser autossuficiente em vacinas que poderão conter surtos que afetam milhões de pessoas todos os anos.

“Vim para o Butantan para ter um olhar também de patrocinador, não só de pesquisador, mas de quem faz a interface com o cliente, que é o Ministério da Saúde, e olhar mercados externos, porque já exportamos vacinas para a América Latina. É um olhar diferente, mas com o mesmo rigor científico”, pondera.

José é otimista quanto ao futuro, embora pragmático ao dizer que mais negros só chegarão à liderança se se verem representados de fato. “Temos que liderar pelo exemplo para que outras gerações sigam nosso rumo e, paralelamente, o estado e o poder privado façam o mesmo”, finaliza.

Reportagem: Camila Neumam

Fotos: Marilia Ruberti/Comunicação Butantan