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O que são superbactérias? Microrganismos extremamente resistentes a antibióticos já representam um problema de saúde global

A multirresistência desses micróbios pode dificultar o processo de cura de doenças comuns e tratáveis, como a infecção urinária


Publicado em: 17/02/2025

Reportagem: Guilherme Castro
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan e Mateus Serrer


Todos os anos, 7,7 milhões de vidas são perdidas em razão de infecções bacterianas. Dessas mortes, 1,27 milhão são causadas por microrganismos que os antibióticos não conseguem mais combater – são as bactérias multirresistentes, conhecidas popularmente como superbactérias. Considerados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma das dez maiores ameaças à saúde global atualmente, esses micróbios fazem com que doenças comuns, como infecção urinária, pneumonia, meningite e tuberculose, se tornem difíceis ou até impossíveis de curar. O risco potencial é ainda maior para procedimentos complexos que podem sofrer com intercorrências, como transplantes de órgãos e terapias com imunossupressores.

O posicionamento da OMS sobre as superbactérias não veio à toa: já em 2014, um relatório encomendado pelo governo do Reino Unido estimava que elas poderiam causar até 10 milhões de mortes por ano em 2050. Em 2022, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) também fez um alerta relacionado ao assunto – bactérias multirresistentes têm se multiplicado com rapidez alarmante e em larga escala desde o início da pandemia de Covid-19.

No Brasil, o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que atuou até 2023 no monitoramento de agentes capazes de rejeitar medicamentos antimicrobianos, corrobora esse crescimento. Em 2019, a organização possuía um repositório com pouco mais de mil bactérias resistentes, enviadas de diversas partes do Brasil. Em 2020, durante a pandemia, esse número já totalizava 2 mil exemplares. Em 2021, o laboratório registrou 3,7 mil amostras de microrganismos resistentes nos dez primeiros meses do ano – três vezes mais que em todo o ano de 2019.

Especialistas concordam que a situação foi agravada pela ausência de um tratamento específico contra a Covid-19 durante a pandemia. “Cerca de 70% dos pacientes afetados no Brasil saía do hospital tomando um antibiótico. A doença é causada pelo vírus SARS-CoV-2. O que um antibiótico pode fazer contra um vírus? Nada. Depois da pandemia é que veio a conta: aumentou muito o número de bactérias resistentes”, explica o doutor em parasitologia e pesquisador científico do Laboratório de Fisiopatologia do Instituto Butantan, André Gustavo Tempone. 
 


Por que as bactérias resistem aos remédios? 

O surgimento das bactérias multirresistentes é quase concomitante à criação dos medicamentos antibióticos. Em 1907, o médico alemão Paul Ehrlich identificou o primeiro antibiótico de origem sintética do mundo, a arsfenamina, utilizada para combater a bactéria Treponema pallidum, causadora da sífilis. Vinte anos depois, em 1928, já eram registrados casos em que o remédio não conseguia eliminar o microrganismo. 

As penicilinas, também descobertas em 1928, passaram por algo parecido a partir de 1943, quando foram incorporadas de forma ampla às terapias clínicas. Seu uso extensivo no tratamento de infecções bacterianas diversas – uma revolução na medicina como a conhecemos – também deu origem a novas bactérias capazes de destruir os compostos utilizados para matá-las. 

Ao receber o Prêmio Nobel de Medicina de 1945, o médico e microbiologista britânico Alexander Fleming, que descobriu a substância, alertou a comunidade médica para o risco potencial de seu uso excessivo: “Não é difícil tornar os micróbios resistentes à penicilina em laboratório, expondo-os a concentrações insuficientes para eliminá-los.”
 
A resistência bacteriana, aliás, é uma propriedade bem conhecida da ciência. “Sempre aconteceu e sempre vai acontecer, porque é uma característica das bactérias – conhecer uma molécula química, depois reconhecê-la, e desenvolver mecanismos para expulsá-la ou degradá-la. A partir disso, a bactéria passa a informação genética para outra bactéria e se cria a resistência”, esclarece Tempone. É um quadro cíclico e natural – por isso, os cientistas estão sempre em busca de fármacos inovadores para mitigar a proliferação de bactérias multirresistentes.

O dilema é que antibióticos capazes de matar essas bactérias não estão sendo desenvolvidos na mesma velocidade em que elas surgem. A produção da última classe inovadora, isto é, que estabelece um avanço em relação aos antibióticos já existentes, data de 1968.

 

 

De acordo com o relatório da OMS Agentes antibacterianos em desenvolvimento pré-clínico e clínico 2023, há no mundo todo cerca de 244 novos produtos antimicrobianos em estudo pré-clínico, sendo 43 deles voltados para os patógenos de prioridade crítica elencados pela organização. Do total de medicamentos em pesquisa pré-clínica, 93 são alternativas não tradicionais, baseadas em tecnologias que utilizam bacteriófagos (vírus que infectam bactérias), inibidores de virulência (que interceptam a comunicação entre os micróbios), compostos imunomoduladores (estimulantes da resposta orgânica do corpo a microrganismos) ou agentes potencializadores. 

Por outro lado, 10 dos 13 antibióticos de modelo tradicional aprovados para distribuição no mercado global por diferentes agências regulatórias, entre julho de 2017 e 2023, fazem parte de classes de antimicrobianos já existentes, nas quais há resistência microbiana conhecida.

Sem medicamentos capazes de combatê-las, as bactérias podem surgir em cepas com mecanismos de resistência cada vez mais sofisticados. As penicilinas são um exemplo: nesta classe de antibióticos existem os anéis beta-lactâmicos, responsáveis por comprometer a integridade da parede celular bacteriana. A bactéria que sobrevive à aplicação do remédio – pelo mau uso ou interrupção do tratamento – dá origem a microrganismos capazes de desenvolver quimicamente uma enzima, a beta-lactamase, que degrada as moléculas do antibiótico e o torna ineficaz. Outra possibilidade de resistência bacteriana são as bombas de efluxo: essas proteínas conseguem expulsar os antibióticos das células antes que eles atinjam o seu alvo molecular. 



 

Tomar antibióticos por conta própria: por que é um grande problema?

Uma das principais causas da resistência microbiana é o uso indiscriminado de antibióticos, especialmente aquele feito sem orientação médica. Em sua tese de doutorado submetida à Universidade Federal de Santa Catarina, a microbiologista Neusa de Queiroz Santos, autora do livro Infecção Hospitalar: uma reflexão histórico-crítica, delimita as consequências do uso desse tipo de medicamento por conta própria: eles podem facilitar a seleção de cepas de bactérias resistentes que irão se proliferar e causar superinfecções. Esse cenário influencia ecológica e epidemiologicamente o ambiente, pode causar grande incidência de efeitos colaterais em pacientes com enfermidades, além de aumentar o número de mortes por infecções bacterianas, sobretudo as que são facilmente tratáveis com antibióticos – quando utilizados da maneira correta.

“Os antibióticos só devem ser utilizados quando o médico fizer a prescrição e seguindo as recomendações de tempo adequadas, pois são, também, perigosos. O médico indicou que você tome o remédio por 14 dias, pode tomar por 13? Não. Nenhuma bactéria pode sair viva”, explica Tempone. 

Vale ressaltar ainda que muitas bactérias são imprescindíveis para a vida das pessoas, e o mau uso de antibióticos também as afetam. “A quantidade de bactérias e fungos presentes no corpo humano é maior do que a quantidade de células, e esses microrganismos compõem o que chamamos de microbiota”, reforça o pesquisador do Butantan. Um estudo publicado na revista Frontiers in Immunology e desenvolvido por cientistas do Brasil, Uruguai, Argentina, Peru, México e Espanha mostra que, em excesso, antibióticos podem afetar negativamente a microbiota intestinal, que é essencial para o nosso sistema imune adaptativo, e até mesmo provocar problemas cardíacos e neurológicos.